Autoengano no tribunal: o juiz de Tolstói e a razão imperfeita

Mas agora, na qualidade de juiz de instrução, sentia que todos, todos sem exceção, mesmo as pessoas mais importantes e convencidas, estavam nas suas mãos, e que lhe bastava escrever determinadas palavras sobre o papel timbrado, e aquele homem importante, autossuficiente, seria conduzido à sua presença na qualidade de acusado ou de testemunha, e, se ele não quisesse convidá-lo a sentar-se, o outro ficaria em pé na sua frente e responderia às perguntas. […] jamais abusou desta sua autoridade e, pelo contrário, procurava atenuar a sua manifestação; mas a consciência dessa autoridade e a possibilidade de atenuá-la constituíam para ele o interesse principal e a atração do seu novo encargo. [1]

Em A morte de Ivan Ilitch, Tolstói narra a história de um juiz que até certa altura proclama fazer tudo “comme il faut”, um sujeito que se enxerga como decente por distinguir os afazeres funcionais dos privados, e particularmente por julgar de acordo com uma forma e saber excluir, na prática desse ato, seus pontos de vista pessoais.

Nem tudo, entretanto, é o que parece ser. Regressando àquele que possivelmente é o primeiro diálogo de Platão, a Apologia de Sócrates, temos retratada a figura do filósofo como alguém que se qualifica basicamente pela capacidade de denunciar, por meio de um método dialógico de perguntas e respostas, as falsas crenças e impressões.

Ao longo de sua trajetória, Sócrates investiga, um a um, diversos de seus compatriotas atenienses mais bem-sucedidos e famosos, aqueles que de fato pareciam ser, aos olhos de todos e aos seus próprios, sábios, para, enfim, constatar que as aparências são enganosas: o general, o poeta, o político, o sacerdote — ninguém efetivamente sabia o que se imaginava e professava saber. E Sócrates, ele próprio, de outro turno, havia sido indicado pela pítia, oráculo de Apolo em Delfos, como o mais sábio entre os homens justamente por não cogitar saber aquilo que não sabia [2].

Realizou com proeza, então, a primeira das recomendações inscritas no pórtico do templo em Delfos: “conhece-te a ti mesmo” — postura essa que lhe permitiu fixar a dicotomia entre ser e parecer ser, numa das mais importantes elaborações forjadas pelo pensamento socrático-platônico.

Na novela de Tolstói, a descoberta de uma doença que desde logo se insinua como iminentemente fatal é o ponto de virada que concede a Ivan Ilitch a oportunidade de protagonizar um autoexame e a ver, através de si mesmo, as verdades profundas de sua história de vida. E o que se descortina não é pouca coisa.

No âmbito familiar, um casamento descrito como involuntário, em que uma das lembranças mais marcantes é a do mau hálito da mulher; sobre o relacionamento com os filhos, o melhor que se pode dizer é que era distante e frio. No plano social e do trabalho como magistrado, tudo é ainda pior: o mundo judiciário se revela composto de pessoas fúteis e vazias, e as “amizades” não são mais que relações interessadas na ocupação de posições de poder.

Trata-se, então, de um reconhecimento de si que, simultaneamente, representa a queda, uma queda desesperada e funesta. De uma vida que insistentemente era, antes, catalogada por Ivan Ilitch como “agradável e decente”, restou “outra coisa”: “Não é isso. Tudo aquilo de que viveste e de que vives é uma mentira, um embuste, que oculta de ti a vida e a morte” [3].

Ante o relato de uma vida que termina por se assumir inadequada, ocorre-nos imediatamente a questão: como, afinal, viver uma vida boa? A evidência da centralidade do problema não é acompanhada, infelizmente, pela evidência facilitadora de uma solução. Nem por isso devemos deixar de procurá-la. E a outra norma inscrita no pórtico do tempo délfico nos oferece uma pista interessante a ser seguida: “nada em excesso”. A máxima encerra o princípio da moderação que, assim, deve-se conjugar com o precitado ideal de autoconhecimento.

As normas délficas imbricam-se, e por ora cabe explorar um dos sentidos possíveis dessa relação: a busca pelo conhecimento, inclusive o conhecimento de si, se não deve jamais abdicar das possibilidades abertas pelo uso da razão, também não deve significar a ingênua recusa de seus limites.

Como bem anota Safatle, uma certa leitura predominante da vida social moderna sustenta que a razão se realiza por meio da criação de um espaço onde o diálogo se torna central. Assim, em uma sociedade racional, instituições e práticas seriam moldadas para resolver conflitos exigindo que os indivíduos explicitem as razões de suas ações e que estas sejam avaliadas com base na busca do argumento mais sólido.

Em essência, a razão orientaria as ações humanas por meio do consenso possível, alcançado na procura pelo melhor argumento. [4] De fato, o ser humano tem, na capacidade racional, um certo poder para conhecer e criticar o seu interior e tudo o mais, ou seja, o que lhe é exterior. Contudo, é preciso ter clareza de que a gramática humana não é onipotente. Se aos homens se recomenda a moderação e não o excesso, é porque, entre outros fatores, também nossa razão é moderada, e não excessiva (como talvez gostaríamos que fosse).

Sendo finita nossa racionalidade [5], é de se notar o papel relevante da concupiscência, das paixões e da vaidade na vida humana — o que tem expressão tanto na vida privada, como na vida pública. Conhecer-se a si mesmo pelas faculdades racionais, então, quer dizer, em especial, saber admitir e identificar quais das nossas ações e ideias são fruto de um trabalho exclusivamente racional e quais, de outro lado, caracterizam-se ao menos parcialmente pela irracionalidade. [6]

Aristóteles

Nesse contexto, importa relembrar que um dos motivos da fundação do Estado de Direito e do estabelecimento da lógica da legalidade é justamente a tentativa de entabular uma gestão racionalizada da vida comum, sem a afetação dos incoerentes e inexplicáveis desígnios das paixões, que como visto conformam consideravelmente as pessoas “físicas”. E disso Aristóteles já estava ciente:

Assim, a exigir que a lei tenha autoridade não é mais do que exigir que Deus e a razão predominem; pelo contrário, exigir o predomínio dos homens, é adicionar um elemento animal; o desejo cego é semelhante a um animal e o predomínio da paixão transtorna os que ocupam as magistraturas, mesmo se forem os melhores dos homens. A lei é, pois, a razão liberta do desejo. [7]

Seja como for, esse Estado de Direito, modelado para exprimir a razão justamente porque os homens não podem fazê-lo sempre e a todo tempo, é conduzido inevitavelmente por homens. Por isso, àqueles que porventura encontram-se nesse tipo de posto, ou seja, no serviço público, ainda mais concentração se deve destinar aos preceitos do oráculo em Delfos.

E sobretudo para quem caiba a desafiadora tarefa de tomar decisões com impactos, é necessário dizer, por vezes insanáveis na vida alheia [8], o autoconhecimento acerca da tensão natural entre os afetos e a razão deve ser tomado como o exercício fundamental. Isso porque “o desejo é a própria essência do homem, isto é, o esforço pelo qual o homem se esforça por perseverar em seu ser” [9], abrangendo, inclusive, sua potência racional.

A obrigação crucial de um juiz, a fundamentação de suas decisões [10], só pode se realizar da maneira que se espera em um Estado de Direito se o relacionamento interior entre o racional e o irracional for, ao menos em alguma medida, acolhido e resolvido — o que não é trivial. É que há aqui um hiato de transposição penosa entre a teoria e a prática: distinguir discursivamente a razão de seu oposto, como aqui se faz, não é tão difícil quanto efetivamente levar a termo a contínua e delicada vigilância que se demanda daqueles que, adotando para si a lição socrática da modéstia [11], pretendem autoconhecer-se e, nas suas ações (ao exercer a função jurisdicional, por exemplo), não se extasiar com a ilusória pretensão de tudo apreender racionalmente.

O autoengano, para além de conduzir possivelmente a uma vida pessoal sem valor, que não vale a pena ser vivida [12], como mostra o triste testemunho de Ivan Ilitch, acarreta, no espectro público, a tragédia do Estado de Direito. Um juiz que não opera o esforço de perceber a limitação de sua capacidade racional e de reconhecer suas paixões é alguém que de fato não usa a razão em seu máximo refinamento — hipótese em que, como se expôs, tal faculdade revelaria suas contidas possibilidades.

E, por isso, é um juiz que não pode, realmente, fundamentar uma decisão, é um juiz que não age “comme il faut”. Uma pessoa assim está fadada, para desgraça e miséria da justiça social, a decidir a vida dos outros irracionalmente, vaidosamente — ainda que, ocasionalmente, tente-se fazer o trabalho parecer ser erudito e fruto da sabedoria.

[2] Cf. Platão. Apologia de Sócrates. Trad. André Malta. Porto Alegre: L&PM, 2011, p. 71-77 (20C-23E).

[3] Tolstói, Lev. A morte de Ivan Ilitch. Trad. Boris Schnaiderman. 2. ed. São Paulo: Editora 34, 2009, p. 73.

[4] Cf. Safatle, Vladimir. “É racional parar de argumentar”. In: Ética e pós-verdade. Porto Alegre: Dublinense, 2017, p. 127.

[5] Cf. Platão. A República. Trad. Anna Lia Amaral de Almeida Prado. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 373-376 (588B-590A).

[6] Cf. Comparini, Julio de Souza. Lei e retórica em Platão. São Paulo: Editora Dialética, 2025 (obra no prelo).

[7] ARISTÓTELES. Política. Trad. António Campelo Amaral e Carlos de Carvalho Gomes. Lisboa: Vega, 1998, p. 259 (1287A). No mesmo sentido de compreender o Estado como expressão da razão, ainda que com variações importantes entre si, estão, por exemplo, as obras de Platão, Beccaria, Hegel e Weber.

[8] Por todos os injustiçados, cite-se o caso de Luiz Carlos Cancellier de Olivo, ex-reitor da Universidade Federal de Santa Catarina.

[9] SPINOZA. Ética. Trad. Tomaz Tadeu. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2009, p. 168.

[10] Cf. Constituição Federal, art. 93, IX; Código de Processo Civil, arts. 10, 11, 12, 370, 426, 489, 647, 919, 927, 932, 1.012, 1.021 e 1.038; Código de Processo Penal, arts. 155, 185, 282, 283, 310, 312, 315, 316, 375, 387, 413, 414, 415, 427, 470, 513, 516 e 660; e Consolidação das Leis do Trabalho, arts. 635, 795, 818, 832 e 896.

[11] Cf. Fontes, Paulo Gustavo Guedes. Neoconstitucionalismo e verdade: limites democráticos da jurisdição constitucional. 4. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2022.

[12] Platão. Apologia de Sócrates. Trad. André Malta. Porto Alegre: L&PM, 2011, p. 102 (38A).

  • Julio Comparinié doutor e mestre em filosofia pela USP (Universidade de São Paulo). Pós-doutorado pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Professor da Faculdade de Direito da PUC de de Campinas. Advogado.

[1] Tolstói, Lev. A morte de Ivan Ilitch. Trad. Boris Schnaiderman. 2. ed. São Paulo: Editora 34, 2009, p. 21.


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