O recente julgamento do processo nº 1000267-59.2025.8.26.0266 (conforme noticiado aqui nesta ConJur), movido contra a Apple Computer Brasil Ltda., evidencia um problema recorrente no Direito do Consumidor: a banalização do dano moral e a ausência de responsabilização efetiva das empresas que descumprem normas consumeristas.
No caso em análise, o consumidor adquiriu um iPhone 15 e constatou que o aparelho não acompanhava um carregador essencial ao seu funcionamento. A empresa, ao se defender, justificou a retirada do acessório com um argumento ambiental, alegando que a medida reduziria o impacto ambiental da produção de eletrônicos.
No entanto, essa justificativa ignora o fato de que a retirada do carregador não foi acompanhada de uma redução proporcional no preço do aparelho, transferindo o ônus financeiro para o consumidor.
A dimensão do problema é ainda maior quando se observa o impacto econômico dessa decisão para a empresa. Estima-se que milhões de aparelhos da Apple tenham sido vendidos sem carregador desde a implementação dessa prática. No Brasil, diversos consumidores recorreram ao Judiciário para exigir o fornecimento do carregador, mas ainda assim, a quantidade de ações representa apenas uma fração dos prejudicados. Isso demonstra que a estratégia empresarial se baseia na certeza de que a maioria dos consumidores não buscará seus direitos na Justiça, o que resulta em uma vantagem financeira significativa para a empresa (chamada de ilícito lucrativo).
O juízo reconheceu a abusividade da conduta empresarial, entendendo que o carregador é um item essencial e que sua ausência configura prática abusiva nos termos do Código de Defesa do Consumidor (artigo 39). No entanto, a condenação restringiu-se à restituição do valor do carregador, negando a indenização por danos morais sob a justificativa de que o transtorno sofrido pelo consumidor não teria sido suficientemente grave para justificar a reparação extrapatrimonial.
Lógica perversa
Tal entendimento desconsidera que o consumidor foi compelido a ingressar com ação judicial para fazer valer um direito básico, situação que caracteriza litigância forçada.
A decisão proferida ignora o princípio da vulnerabilidade do consumidor, bem como a própria lógica do dano moral no âmbito das relações de consumo. O dano moral, nesse contexto, não decorre apenas do não fornecimento do carregador, mas da necessidade imposta ao consumidor de acionar o Judiciário para obter aquilo que já deveria ter sido entregue.
O tempo e os recursos despendidos no litígio representam um ônus injustificado para o consumidor, beneficiando a empresa que adota uma postura deliberadamente lesiva.
Além disso, a função social desse tipo de demanda deveria ser a prevenção de práticas abusivas e a efetiva proteção do consumidor. No entanto, ao negar o dano moral, a decisão contribui para a perpetuação desse modelo de negócios, pois não gera um desestímulo econômico para as empresas que insistem em descumprir suas obrigações.
A mensagem transmitida é clara: a empresa pode violar direitos e, no pior cenário, apenas ressarcir o valor de um item que já deveria ter sido entregue desde o início, sem qualquer sanção adicional. Isso incentiva um modelo de negócios no qual o descumprimento da lei se torna economicamente vantajoso.
O resultado final desse julgamento reforça a lógica perversa de que descumprir a lei compensa financeiramente. A empresa já incorporou essa prática ao seu modelo de negócios, pois sabe que, ao fim, arcará apenas com a reposição do acessório quando for judicialmente obrigada. Sem sanções mais severas, como indenizações por danos morais, a situação continuará sendo vantajosa para a empresa e prejudicial para o consumidor, que se vê obrigado a lutar judicialmente por algo que deveria ter sido garantido desde a compra.
Diante desse cenário, é essencial que o Judiciário adote uma postura mais rigorosa e reconheça o dano moral por litigância forçada com mais frequência. O dano moral por litigância forçada ocorre quando o fornecedor impõe ao consumidor a necessidade de recorrer ao Judiciário para garantir um direito que deveria ter sido respeitado desde o início, consumindo tempo, recursos e energia desnecessariamente.
Esse entendimento se alinha ao princípio da boa-fé objetiva e ao dever das empresas de não abusarem da posição de superioridade na relação de consumo. Tive a oportunidade de abordar essa questão em um artigo publicado nesta ConJur, no qual discuti a responsabilização do fornecedor pelo uso indevido do tempo do consumidor e a necessidade de os tribunais reconhecerem essa modalidade de dano moral como uma forma de inibir condutas abusivas.
O consumidor não pode ser penalizado por exigir judicialmente o cumprimento de uma obrigação básica da empresa. O princípio da boa-fé objetiva exige que as relações de consumo sejam pautadas na confiança e na transparência, o que não se observa quando uma empresa impõe um ônus indevido ao consumidor.
Se o Judiciário continuar negligenciando essa realidade, seguirá vencendo a lógica perversa de que o descumprimento da lei é um negócio lucrativo, enquanto a luta pelo direito segue sendo um ônus exclusivo do consumidor.
- Leonardo Garciaé procurador do estado do Espírito Santo, mestre em Direitos Difusos e Coletivos pela PUC-SP, diretor do Brasilcon, membro do GT de acompanhamento da Lei do Superendividamento no CNJ, autor dos livros Código de Defesa do Consumidor Comentado (2025) e Lei do Superendividamento Comentada e Anotada (2025), ambos pela Editora Juspodivm.
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