A investigação criminal, até um passado recente, ficava a cargo da polícia judiciária. Assim, através de um procedimento puramente inquisitorial, buscava-se comprovar a autoria e a materialidade do delito, chegando-se ao indiciamento do investigado. Apesar de sucessivas reformas pontuais na legislação essa metodologia não sofreu significativas alterações.
A novidade sobreveio após a Constituição Federal de 1988, quando passamos a discutir sobre a legitimidade concorrente do Ministério Público de conduzir investigações criminais sem a necessidade da polícia judiciária, onde seriam produzidos e elaborados os Procedimentos de Investigação Criminal (PIC). Essa discussão inclusive foi objeto de análise pelo Supremo Tribunal Federal e até hoje gera controvérsias. O tema será certamente revisitado pela Corte em face de abusos ocorridos em determinados casos recentes.
Se fizermos uma reflexão sobre a repressão policial no Brasil, veremos que ela não se concentra na investigação criminal, mas na prisão em flagrante de pequenos traficantes de drogas e autores de delitos contra o patrimônio, concentrando-se, assim, em delitos que dispensam pela sociedade um cuidado procedimental maior. Essas ações, que não têm qualquer caráter notório de investigação, concentram-se na ideia de efetividade, ou seja, de dar uma falsa ideia de controle da criminalidade e de responder aos anseios sociais de que prisões estão sendo realizadas.
O problema é que em muitos desses casos há um descuido no procedimento e na comprovação dos fatos. Assim, em nome em nome de uma reclamada eficiência e da rapidez da apuração e principalmente da comprovação da autoria, deixa-se de lado as garantias constitucionais em troca de uma efetividade falsa que se contradiz com a eficiência do procedimento.
Feita essa pequena introdução, devemos discorrer sobre um breve histórico do que vimos até agora como sendo os mecanismos do poder de investigar nessa última década. Passo a enumerar, embora não de forma exaustiva, algumas técnicas que já foram utilizadas e que demonstraram a sua ineficácia, razão pela qual foram afastadas pela Corte Constitucional.
Num passado próximo um dos mecanismos mais utilizados para se obter a confissão, ou, ao menos o depoimento do investigado era a condução coercitiva. Muitos investigados foram conduzidos inopinadamente às delegacias de polícia por meio desse instituto para que prestassem depoimentos. O grande paradoxo dessa técnica investigatória é que há a garantia constitucional da não autoincriminação. Portanto o sujeito conduzido poderia exercer o direito de ficar em silêncio. Mas por que a condução coercitiva então?
É verdade que diante da pressão psicológica exercida somada ao efeito midiático emprestado à medida muitos não resistiam e acabavam prestando depoimento sobre fatos que sequer tinham pleno conhecimento. Acertadamente a condução coercitiva, da forma em que era utilizada, foi banida de nossa ordem jurídica.
Em segundo lugar e infelizmente ainda utilizado em nosso ordenamento jurídico, está a decretação da prisão temporária. A prisão temporária foi pensada como mecanismo de apuração dos fatos quando fosse imprescindível para as investigações do inquérito policial em determinados delitos graves. Porém, na maioria dos casos de sua utilização, ela serviu mais como elemento de coação para que o depoimento do investigado fosse prestado do que propriamente para apuração dos fatos.
Mesmo que de curta duração e com a ameaça de conversão em prisão preventiva, os investigados presos temporariamente preferiam prestar depoimento em troca da liberdade a ser requerida pela autoridade policial. Novamente houve a troca da efetividade por eficiência. Fica claro que esse mecanismo de investigação surte efeitos deletérios em face da coação psicológica.
Em terceiro lugar, devemos tratar do uso e abuso das interceptações telefônicas, quebras de sigilo fiscal e telemático como mecanismos de investigação, muitos deles corrigidos pela Suprema Corte em face das distorções em sua utilização. Alguns inclusive feitos sem o devido controle judicial, como foi o caso de requisições diretas dos Relatórios de Inteligência Financeira (RIF) pelos órgãos de persecução penal e outros sem a devida fundamentação legal como exige a Constituição Federal, nos casos de interceptações telefônicas reiteradas com a repetição de despacho que a autorizou inicialmente.
Em quarto lugar a utilização do instituto da colaboração premiada prevista na Lei 12.850/13 como forma de obtenção de prova. Talvez nesse instituto tenha havido a maior distorção vista até hoje num mecanismo que poderia ser útil, mas, diante da deturpação e da má utilização pelos órgãos de persecução penal tornou-se alvo de críticas severas e acabou sendo corrigido pela interpretação do Supremo Tribunal Federal.
Nesse caso específico, os acordos inicialmente retiravam até mesmo garantias constitucionais do investigado/acusado, o que foi objeto de rechaço pelo STF. De outro lado, muitos investigados ou acusados se viram forçados a firmarem o acordo em troca da liberdade. Mas no ponto que interessa, como mecanismo de investigação criminal, vimos que o instituto também falhou. Isso porque foi utilizado de forma equivocada quando poderia ter alguma serventia.
Na prática, como mencionamos, foi utilizado como mecanismo de coerção em troca da liberdade desde que houvesse a confissão e entrega de coautores e partícipes de determinados delitos ou organizações criminosas. Porém, ainda que o objetivo final fosse descortinar determinadas organizações criminosas e recuperar o proveito do crime o que se viu foi uma excelente oportunidade de trocar liberdade pelo acordo.
A Corte Constitucional já vinha dando sinais, principalmente nos julgamentos da 2ª Turma, de que os acordos firmados somente com a palavra do colaborador ou com as colaborações cruzadas — isto é, onde dois ou mais colaboradores prestavam depoimento sobre os fatos criminosos —, não era suficiente para embasar um juízo condenatório.
Em alguns casos a Corte chegou a rejeitar a denúncia lastreada somente na palavra do colaborador. Posteriormente, com a edição do denominado “pacote anticrime” a lei da colaboração premiada foi alterada e esse problema da imprestabilidade da palavra isolada do colaborador sem dados de corroboração foi corrigido. O problema é que diversas ações penais foram deflagradas com base nessa técnica de investigação, fato este que resultou em uma marcha processual desgastante e desnecessária contra o acusado.
Como já afirmamos, o instituto não é desprezível e pode ser utilizado como mecanismo de investigação. O problema foi a sua utilização sem os devidos critérios e formalidades, chegando-se, em alguns casos, a propostas que contrariavam a legislação material e processual penal.
De outro lado, o investigado, na maioria das vezes preso, acabava por firmar o acordo como forma de obter a liberdade. Muitos pedidos de liberdade foram negados até que o investigado ou acusado firmasse o acordo. Isso certamente não pode ser uma boa técnica de investigação criminal, ou seja, a utilização da prisão como forma de obtenção da prova.
Em quinto lugar, como já havia mencionado linhas antes, há de se pontuar a utilização de investigações paralelas e sem controle judicial feitas pelo Ministério Público nas esferas estadual ou federal. Os denominados Procedimentos de Investigação Criminal não contam com qualquer supervisão ou fiscalização, o que muitas vezes implica em situações de duplicidade de investigação do acusado por parte do parquet e também da autoridade policial.
No entanto, esta submete-se a prazos e controle de legalidade, enquanto aquela não fica sob qualquer supervisão, a não ser do próprio órgão que conduz a investigação. O que ocorre na prática com esses procedimentos é uma espécie de double jeopardy clause, ou seja, um duplo risco de investigação.
Essa vedação integra a Quinta Emenda à Constituição dos EUA, ou seja, a proibição de duplo risco ou da dupla persecução penal. Certamente isso não pode e não deve constituir uma boa técnica de investigação porque cerca o indivíduo de sucessivas investidas do Estado contra os seus diretos e garantias constitucionais.
Em sexto lugar, o reconhecimento de pessoas como técnica de investigação criminal. Nesse ponto, rendo a homenagem ao ministro Rogério Schietti que corajosamente vem enfrentado na 6ª Turma do STJ essa questão. A técnica do reconhecimento de investigados através de fotografias ou amostragem de pessoas junto com o suspeito para que a vítima aponte o autor do delito tem se mostrado claramente falha como mecanismo de investigação.
Novamente troca-se eficácia por eficiência, pois rapidamente encontra-se um culpado. Além disso, num país de forte discriminação racial, essa técnica de investigação proporciona o encarceramento em massa de pessoas que, infelizmente, têm maior assiduidade no banco dos réus por questões raciais e sociais.
Em sétimo lugar, aponto como mecanismo malsucedido de investigação criminal a utilização das prisões preventivas, muitas sustentadas sob o argumento de garantia da instrução criminal ou da periculosidade do agente. Em muitos casos a instrução processual já está concluída e a prisão não é revogada, caindo por terra o argumento que a sustenta, muito embora não seja essa a solução dada pelos magistrados país afora. Há grandes dificuldades dos operadores do sistema de justiça criminal ainda em se aceitar que as cautelares alternativas à prisão ainda são melhores do que o encarceramento. Resta-se saber o porquê.
Em oitavo lugar, há o problema da duração dos inquéritos policiais com pedidos reiterados de diligências como mecanismo de investigar. A longa duração de procedimentos investigativos não se revela eficaz e demonstra a falta de critérios objetivos na busca de produção de provas. A Corte Constitucional tem limitado os sucessivos pedidos de prorrogação quando não há efetiva proposição de diligência que possa solucionar o caso, fato este que leva ao arquivamento do caderno inquisitorial.
Em último lugar, como mecanismo de aprimoramento das investigações criminais deveria ocorrer a vedação da produção de prova de ofício pelo juiz, em respeito ao princípio acusatório no Processo Penal, devendo o juiz ficar equidistante das partes. Infelizmente a legislação ainda permite a produção de provas de ofício pelo magistrado, fato este que certamente contamina o julgamento.
Esse exemplo é visto de forma clara na lei de lavagem de dinheiro, onde o juiz pode determinar o sequestro de bens do investigado ou acusado. Nesse caso, o juiz que determinou a medida cautelar com prova indiciária como permite a lei, não deveria julgar o caso. Considero esse mecanismo uma investigação indireta conduzida pelo magistrado, fato este que não encontra respaldo no sistema acusatório.
Feitas essas breves digressões, em que não procurei exaurir o tema, mas apenas exemplificar a falibilidade e ineficácia de mecanismos de investigação mal utilizados em nossa sistemática em que se faz necessária a busca por soluções, ou ao menos, uma breve reflexão.
Anoto, brevemente, que o Estado pode e deve investigar os delitos cometidos, porque isso faz parte de uma sociedade que se propõe manter uma boa convivência social. Aliás, essa seria também uma missão do Direito Penal. Porém, qualquer mecanismo de investigação criminal deve sempre estar dentro das normas constitucionais, isto é, respeitando os direitos e garantias fundamentais. Ainda que a pessoa seja suspeita de um crime, o ferimento de seus direitos não justifica o resultado da investigação. A cautela em tudo que foi elencado linhas acima deve nortear a investigação. Resultados precipitados em nome de uma pronta resposta à sociedade não se revelam como a melhor técnica.
André Callegari é advogado criminalista, pós-doutor em Direito Penal pela Universidad Autónoma de Madrid, professor de Direito Penal no IDP-Brasília e sócio do Callegari Advocacia Criminal.