A ciência das armas de fogo

Podemos dizer que as balas e os cartuchos encontrados na cena de um crime partiram de uma arma de fogo em particular? De fato, há anos este tem sido o objetivo dos exames periciais de confronto microbalístico. Contudo, segundo a juíza April Newbauer, em decisão recente da Suprema Corte do Estado de Nova Iorque (The People v. A.M. & Michael Ross)[1], este tipo de interpretação carece de fundamento científico. Para chegar a esta decisão inusitada, a juíza Newbauer escutou as opiniões de diferentes experts da acusação, da defesa e — contrariando a lógica do sistema adversarial — indicados pela própria corte.

Para Newbauer, o problema está na confrontação de marcas, deixadas em balas e cartuchos encontrados no local de um crime, que extrapolam as chamadas “características de classe”[2]. As marcas que se referem a características de classe são aquelas que decorrem de processos de fabricação. Por esta razão, são marcas compartilhadas por uma categoria inteira de balas e cartuchos.

Mas também há marcas que se referem a características individuais, as quais resultam de imperfeições encontradas em armas particulares decorrentes do uso ou do meio. Segundo Newbauer, a perícia pode, depois de realizar uma comparação visual microscópica de balas e cartuchos, emitir um laudo relacionando as marcas encontradas àquelas que identificam certos modelos de armas de fogo (i.e., sua classe); mas ela não pode interpretar quaisquer outras marcas de modo a concluir categoricamente que as balas ou os cartuchos partiram de uma arma de fogo em particular.

O caso tratava da acusação de posse de arma de fogo contra um homem de 32 anos, Michael Ross, e uma mulher de 23 anos, Amina Mansell. Após um tiroteio no condado do Bronx, uma arma de fogo foi encontrada dentro do veículo de propriedade de Ross. Cartuchos de balas também foram achados do lado de fora do seu veículo. Contra Ross, havia ainda prova testemunhal e exame de DNA que o incriminavam. Contudo, contra Mansell, passageira do veículo de Ross, a única prova de que ela tinha a posse da arma era o confronto entre os cartuchos do lado de fora e a arma de fogo encontrada no interior do carro[3].

A discussão chegou à Suprema Corte do Estado de Nova Iorque por meio de um pedido da defesa para que o perito em balística do Departamento de Polícia de Nova Iorque (NYPD) não fosse admitido. Os réus alegaram que esta técnica não mais gozava da “aceitação geral na comunidade científica relevante”, violando, portanto, o critério para a admissibilidade do testemunho de experts estabelecido no caso Frye. A defesa requereu a exclusão dos peritos em balística, alegando que eles sofrem de um viés profissional e são indiferentes ao método científico. Os peritos em balística seriam “equivalentes forenses dos astrólogos” — afirmaram. 

Permita-se explicar brevemente os casos Frye e Daubert antes de continuar.

Neste precedente de 1923, James Frye havia voltado atrás na confissão de um crime de homicídio. A defesa queria submetê-lo a um teste de detecção de mentiras em audiência. A corte não permitiu, alegando que a técnica – precursora do polígrafo – não havia conquistado a aceitação geral no campo particular ao qual pertencia. Em 1993, o teste Frye foi superado pelo teste Daubert nas cortes federais dos Estados Unidos e em algumas jurisdições estaduais.

Daubert foi um caso de natureza civil em que se discutia a responsabilidade de uma empresa farmacêutica pelos efeitos teratogênicos de um medicamento. Os autores apresentaram como prova uma revisão de estudos epidemiológicos que não havia sido publicada em periódico revisado por pares. O teste estabelecido em Daubert é mais complexo e rigoroso, pois prevê, além da aceitação geral, outros três critérios para se aferir a confiabilidade científica: a testabilidade do método; sua taxa de erro conhecida ou potencial; e sua revisão por pares e publicação[4].

Tudo isso foi dito para concluir que, nos tribunais estaduais, a superação de Frye não foi universal; e Nova Iorque, como vimos, é um estado que ainda o aplica.

De volta ao recente julgamento da Suprema Corte de Nova Iorque, a acusação apresentou a opinião de Jennifer Lady, uma especialista em certificação de procedimentos e garantia de qualidade do laboratório do Departamento de Polícia de Nova Iorque; Jonathan Fox, um detetive com vinte anos de experiência no referido Departamento de Polícia, e que atuou especificamente no setor de microbalística; e Todd Weller, um consultor em ciência forense, antigo criminalista e membro da Associação de Examinadores de Armas de Fogo e Marcas de Ferramentas (AFTE).

Tanto o detetive Fox como o consultor Weller afirmaram que os exames de confronto microbalístico seguiam as orientações da AFTE em relação às conclusões que podem ser alcançadas. Para ambos, seguindo a terminologia da AFTE, o exame das marcas deixadas em determinado cartucho pode levar um perito a identificar uma arma em particular quando há “acordo suficiente” entre as características do cartucho individual e da classe da arma nos pares visualmente confrontados sob um microscópio. Como a própria AFTE reconhece, o exame depende de uma interpretação subjetiva do perito e de sua habilidade e experiência[5]. Para a juíza Newbauer, “o vago standard do ‘acordo suficiente’ e o raciocínio circular exigido para se chegar a uma identificação de uma arma de fogo não possuem aceitação na ciência majoritária”.  

A defesa apresentou as opiniões de experts em metodologia da pesquisa científica e psicologia da decisão. Um deles é o conhecido professor de direito e estudioso da prova pericial, David Faigman. Para Faigman, a técnica de confronto microbalístico nunca foi testada de acordo com protocolos aceitos e nunca passou por um processo adequado de revisão por pares. Os estudos realizados até o momento foram conduzidos e validados pela própria comunidade forense. Além disso, o único estudo bem-estruturado e com resultados confiáveis, realizado pelo Laboratório Ames (do Departamento de Energia dos Estados Unidos), teve uma alta taxa de evasão de participantes (30%) e de respostas consideradas inconclusivas (20%)[6].

Um dos pontos controvertidos entre os experts da acusação e da defesa era a interpretação das respostas inconclusivas de tal estudo. A questão consistia em saber se elas representavam ou não uma taxa de erro. Para dirimir a dúvida, a juíza Newbauer convocou uma especialista em estatística, Heike Hofmann, como testemunha da própria corte — como dito, algo não muito comum no sistema adversarial. Hoffmann concordava com os experts da defesa em relação aos problemas de desenho metodológico das pesquisas até então realizadas pela comunidade de peritos em balística. Em relação à controvérsia sobre a taxa de erro, afirmou que esta era artificialmente deflacionada com a exclusão dos resultados inconclusivos.   

A importância desta decisão consiste no crescimento do significado de “comunidade científica relevante”. Ao convocar especialistas de diferentes áreas, a juíza Newbauer ampliou o alcance do conceito e promoveu uma importante evolução jurisprudencial na aplicação do teste Frye no Estado de Nova Iorque. Agora devemos incluir, no escopo da comunidade científica relevante, não só os estudos procedentes da própria comunidade de cientistas forenses que atuam na área de confronto microbalístico (ou de identificação de marcas de ferramentas), mas especialistas em áreas como metodologia da pesquisa científica, psicologia e estatística. “Cada uma dessas comunidades sobrepostas desempenha um papel importante na determinação do que é ciência aceita no campo da identificação de armas de fogo e marcas de ferramentas”, afirmou Newbauer.

Em termos concretos, a decisão deferiu parcialmente o pedido dos réus. Por um lado, concluiu que o expert em confronto balístico não pode opinar sobre assuntos que não encontram suporte na (agora ampliada) comunidade científica relevante – como interpretar marcas de características individuais de modo a dizer que as balas ou os cartuchos encontrados do lado de fora do veículo de Ross partiram da arma de fogo que estava no seu interior e, para todos os efeitos, também sob a posse de Mansell. Mas, por outro lado, os peritos podem sim opinar a respeito da existência de marcas referentes a características de classe nas balas e cartuchos. Logo, é possível dizer se as marcas de características de classe excluem ou incluem a arma de fogo encontrada dentro do veículo.

O debate judicial sobre a aceitação deste tipo perícia técnica na comunidade científica deve ser encarado como resultado de um movimento maior de questionamento de uma série de disciplinas tradicionalmente aceitas como “ciência forense”. Este movimento tem sua origem com a publicação do relatório de 2009, Strengthening Forensic Science in the United States: A Path Forward (Fortalecendo as ciências forenses nos Estados Unidos: um passo adiante), elaborado pelo Conselho Nacional de Pesquisa da Academia Nacional de Ciências dos Estados Unidos. Outro marco importante e mais recente é o relatório de 2016, Forensic Science in Criminal Courts: Ensuring Scientific Validity of Feature-Comparison Methods (Ciência forense em cortes criminais: garantindo a validade científica de métodos de comparação de características), do Conselho de Assessores da Presidência em Ciência e Tecnologia. Para corroborar a importância de tais estudos, vale lembrar que, segundo dados do Innocence Project, erros periciais contribuíram para 45% dos casos de condenações errôneas revertidas com a prova de DNA nos Estados Unidos.  


[1] Agradeço ao Paulo Akira por ter me despertado para esta decisão e, ainda, pela sua perícia terminológica; e à querida Marcella Mascarenhas Nardelli, pela disposição notívaga.    

[2] V. Harris, David. Failed Evidence: Why Law Enforcement Resists Science. New York: New York University Press, 2012.

[3] A posse de arma de fogo é crime no Estado de Nova Iorque (New York Penal Law, Part 3, Title P, Article 265.01-b1). A pessoa é considerada culpada quando ela “sabidamente exerce a posse de qualquer arma de fogo”, o que pode ocorrer pelo simples fato de que ela se encontra em um ambiente onde a arma de fogo está à sua disposição (“posse construtiva”).  

[4] A controvérsia jurídica decida pela Suprema Corte dos Estados Unidos era se as Regras Federais Probatórias (em especial a regra no. 702), uma espécie de código probatório criado em 1975, tinha revogado o teste Frye. Uma análise completa do teste Daubert demandaria a consideração de uma série de casos que foram decididos na sequência (e que compõem a chamada Trilogia Daubert). Ver, por todos, Haack, Susan. Disentangling Daubert: An Epistemological Study in Theory and Practice. The Journal of Philosophy, Science, and Law, vol. 5, issue 1, 2005, pp. 25-36.

[5] Harris, David. Failed Evidence: Why Law Enforcement Resists Science. New York: New York University Press, 2012.

[6] V. trecho específico da decisão. 

Rachel Herdy é professora de teoria do Direito na UFRJ; doutora em sociologia pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Iesp-Uerj) e co-líder do Grupo de Pesquisa Epistemologia Aplicada aos Tribunais (Great).

Revista Consultor Jurídico, 11 de setembro de 2020, 8h19

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