A investigação defensiva como uma necessidade democrática

Os sistemas inquisitório e acusatório, bem como os princípios que os informam, são produtos de épocas e necessidades diferentes, sendo hoje compreendido como um fator que indica a aderência de uma nação constitucionalizada a um projeto democrático: em geral, países com maior ou mais recente histórico de governos autoritários e opressores tendem a apresentar mais traços inquisitivos em suas legislações processuais, ao passo que países com governos tidos como democráticos e melhor estabelecidos gravitam em direção a caracteres de um sistema preponderantemente acusatório

A escolha dos elementos nucleares de cada modelo é “condicionada por juízos de valor em virtude da conexão que indubitavelmente pode ser instituída entre sistema acusatório e modelo garantista e, por outro lado, entre sistema inquisitório, modelo autoritário e eficiência repressiva.

A paridade de armas no processo penal é uma necessidade democrática, a qual visa o aprimoramento das instituições que compõem o sistema de justiça e a observância concreta de direitos e garantias fundamentais.

Tudo isso porque a Constituição Federal instituiu o sistema processual penal acusatório, com a delimitação de papéis bem definidos e que permitem um equilíbrio pela equidistância da acusação e da defesa ao órgão julgador, devendo essa condição ser reconhecida em todas as fases do exercício do jus puniendi estatal, inclusive na investigação preliminar.

Movimentos político criminais contemporâneos fundamentam projetos de reformas e concretizam normas que conferem ao ente privado a capacidade de produção de atos de investigação durante a apuração preliminar, atividade antes concentrada e condicionada à discricionariedade da autoridade pública.

O PLS 156/2008, que propõe a reforma global do Código de Processo Penal, dispõe sobre a faculdade outorgada ao investigado que, a seu favor e por intermédio de advogado ou mandatário com poderes expressos, poderá tomar iniciativa de identificação de fontes de prova durante a fase da investigação criminal, inclusive podendo coletar depoimentos desde que precedidos de esclarecimentos sobre seus objetivos e do consentimento do entrevistado.

Por isso, BALDAN defende que a demarcação dos elementos de convicção contidos no inquérito transcendem a função acusatória, pois a investigação também possui função intransitiva que impõe uma apuração legítima não condicionada ou subordinada exclusivamente pelas razões da acusação, o que revela dissimulada antecipação de instrução em favor de uma única parte.

Cabe assim à autoridade investigante manter também um papel de equidistância entre aqueles que se converterão, no futuro, partes adversas no processo penal. Sua atuação deverá estar orientada pela neutralidade, pois se persistirmos pensando a finalidade da investigação criminal sob o prisma exclusivo dos interesses acusatórios, seguiremos reduzindo a incidência dos direitos da defesa, pois, ainda que presentes na etapa judicial, deficientes na fase preliminar (BALDAN, 2017, pp. 388-389).

Neste contexto, pensar a paridade de armas em sua concepção moderna significa reconhecer que nenhuma das partes pode postar-se em uma posição desvantajosa em relação à outra, o que deve ser assegurado em qualquer momento da persecução penal estatal, bastando que haja qualquer imputação formal e material.

Essa interpretação decorre da análise sistemática da jurisprudência do Tribunal Europeu de Direitos do Homem e do Tribunal Penal Internacional, que ampliam o conceito de acusação à apuração preliminar e asseguram direitos específicos ao imputado nesta fase da persecutio criminis.

Elementos estruturantes do devido processo legal, como a necessidade de regramento legal emanados do poder legislativo e amparado em disposições justas e razoáveis, a existência de instrumentos formais adequados de aplicação dessas normas jurídicas e a condição de equilíbrio entre os sujeitos e os reflexos dessas práticas na legislação seriam os elementos identificadores da (i)legalidade da atuação estatal no processo penal.

É bem verdade que a proposição da extensão do contraditório à fase preliminar poderia criar um duplo transtorno: frustrar a realização de atos de investigação que exijam sigilo sobre o seu desenvolvimento e criar indiscutivelmente a ocorrência de duas fases de instrução, uma conduzida pela autoridade policial e outra conduzida pela autoridade judicial.

Entretanto, admitindo que o nosso sistema atual possibilita de forma legal a intromissão do conteúdo do inquérito policial na formação da decisão judicial, a investigação policial com plenitude contraditória poderia inserir a atividade definitivamente dentro do marco democrático, legitimando o conteúdo das decisões judiciais amparadas nos elementos lá produzidos.

Investigação penal efetiva e redimensionamento das estruturas de poder
MACHADO define a investigação privada como gênero, sendo aquela que conduzida por um ente não estatal e vinculada a um caso penal, a ser realizada informalmente pelo próprio interessado, por um detetive particular ou conduzida por um defensor privado.

Para nós, o conceito de investigação preliminar privada é mais abrangente, e consiste na sequência de diligências e técnicas de apuração realizadas por particulares visando resguardar a tutela judicial dos interesses de pessoas físicas ou jurídicas, que possibilitam a produção direta ou indireta de atos de investigação latu sensu sobre elementos que envolvem a apuração de um fato, favoráveis ou não aos interesses do investigante, por intermédio de agente constituído para este fim e para a catalogação dos elementos de informação obtidos.

Importante ressaltar que a busca de elementos por particulares consiste em mero ato de investigação de apuração de forma precária, ao que os arts. 28, 46, §1º e 67, I do Código de Processo Penal atribuem a condição de “peças de informação”.

Não deve ser classificada como procedimento, pois consistem em meras informações coletadas por particulares e entregues à autoridade condutora da investigação preliminar para análise da conveniência de sua utilização durante a persecução penal.

Por sua vez, a investigação por detetive particular encontra-se disciplinada na Lei 13.432/2017 e, ainda que o ofício não tenha assento no sistema de justiça criminal, é necessário reconhecer que os elementos que são resultado de sua apuração podem aportar livremente na fase preliminar ou no processo penal.

Ainda que MACHADO (2018, p. 164) estabeleça que a relação entre detetive particular e autoridade policial seja uma relação de colaboração do primeiro para com a segunda e sujeita ao seu poder discricionário, deve-se reconhecer que os efeitos produzidos pelos elementos colhidos pelo detetive particular não se limitam ao inquérito policial, e podem permear o processo penal por outros meios, além de produzir efeitos em processos nas searas cível e administrativa.

Também, podemos discordar da classificação atribuída pelo autor entendendo a atividade do detetive particular como espécie de investigação privada; parece-nos que se trata de um meio de obtenção da prova a serviço da investigação preliminar e do processo.

Investigação defensiva
Já a investigação defensiva, esta sim espécie da investigação privada, consiste na possibilidade de o imputado realizar diretamente a investigação do fato criminoso por intermédio de seu defensor, com o intuito de reunir elementos de convicção que lhe sejam favoráveis.

No mesmo sentido, BALDAN entende por investigação defensiva o complexo de atividades de natureza investigatória desenvolvido, em qualquer fase da persecução criminal, inclusive na antejudicial, pelo defensor, com ou sem assistência de consulente técnico e/ou investigador privado autorizado, tendente à coleta de elementos objetivos, subjetivos e documentais de convicção, no escopo de construção de acervo probatório lícito que, no gozo da parcialidade constitucional deferida, empregará para pleno exercício da ampla defesa do imputado em contraponto à investigação ou acusação oficiais.

A atividade da investigação defensiva
No plano internacional, a atividade de investigação pela defesa encontra salvaguarda no Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (1966), que coroa os direitos a “dispor do tempo e dos meios necessários à preparação de sua defesa” (art. 14, 3, b) e “obter o comparecimento e o interrogatório das testemunhas de defesa nas mesmas condições de que dispõem as de acusação” (art. 14, 3, e); na Convenção Americana de Direitos Humanos, que determina a “concessão ao acusado do tempo e dos meios necessários à preparação de sua defesa” (art. 8, 2, c), bem como o “direito da defesa de (…) obter o comparecimento, como testemunhas ou peritos, de outras pessoas que possam lançar luz sobre os fatos” (art. 8, 2, f); assim como o Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional, o qual igualmente se preocupa em assegurar aos acusados o direito a dispor do tempo e dos meios necessários à preparação das suas defesas (art. 67, 1, b), obter o comparecimento das testemunhas de defesa na mesma condição das testemunhas da parte processual acusadora e “apresentar defesa e a oferecer qualquer outra prova admissível, de acordo com o presente Estatuto” (art. 67, 1, e).

Como elementos constitucionais fundantes, pode-se referir os princípios da legalidade (art. 5º, II, CF), investigante natural (art. 5º, LIII, CF),  igualdade (art. 5º, caput, CF), do devido processo legal (art. 5º, LIV, CF), do contraditório e da ampla defesa (art. 5º, LV, CF), publicidade (art. 37, CF), inadmissibilidade de provas ilícitas (art. 5º, LVI, CF), duração razoável da investigação (art. 5º, LXXVIII, CF), presunção de não-culpa e não auto-incriminação (art. 5º, LVII, CF) (BALDAN, 2014, p. 156-184), sendo possível, ainda, alegar que a segurança pública é direito e responsabilidade de todos (art. 144, CF).

Aspectos essenciais da investigação defensiva
Além disso, há uma acentuada relevância quanto ao aspecto do controle da legalidade nas persecuções penais, quando se lançam novos olhares sobre a forma de atuar dos agentes estatais, desde os integrantes das forças de segurança pública, passando pelos órgãos ministeriais e desembocando no próprio Judiciário.

Significa, para além do avanço em relação ao direito de defesa do acusado e à ampliação do campo de atuação do sistema de justiça criminal, uma importante ferramenta para estabelecer um equilíbrio entre a atuação da defesa e do Ministério Público durante a fase preliminar, já que a este são outorgados poderes investigatórios que não são concedidos àquela (MACHADO, 2018, p. 165).

Apesar de ser uma atividade já desenvolvida em outros países como Itália e Estados Unidos, a investigação defensiva é um tema com poucas análises feitas no Brasil, porém de extrema importância. Sua prática atribui maior ressonância aos anseios da defesa e dos próprios cidadãos, que garantem seus direitos através dos seus advogados, na medida em que oferecem mais condições materiais para instrumentalizar, do ponto de vista probatório, suas teses e pleitos.

Investigação defensiva e mudança de cultura
É bem verdade que essa nova forma de atuação exige uma mudança significativa de cultura, estrutura, postura e perspectiva, não apenas por parte das instituições responsáveis pela persecução penal, como dito anteriormente, mas também por parte daquele (e para aquele) que conduz a defesa e que passa a ter postura nitidamente proativa na defesa dos interesses de seus constituintes.

Grande parte das cultura e estrutura herdadas do sistema inquisitorial não é compatível com o sistema agasalhado pela Constituição Federal, o acusatório, advertindo COUTINHO (2017) sobre a necessidade de que estejam todos tecnicamente adequados à mudança, adaptados a uma nova mentalidade democrática e adversarial, pois não basta a mera alteração legislativa.

A quebra da inquisitorialidade passa por uma reengenharia do sistema e das estruturas do processo penal brasileiro, que, de tão antigos, já estão incorporados às práticas cotidianas dos operadores do sistema de justiça criminal como um todo. Eles nem mais percebem sua postura antidemocrática (NETO, 2017, p. 133).

Isso pressupõe, ainda, a redistribuição das tarefas na produção de elementos de investigação na fase preliminar, o que nem sempre é visto com bons olhos por parte daqueles cujos poderes e possibilidades antes recaiam com exclusividade. Os poderes de investigação, que antes repousavam nas mãos dos membros de polícia e do Ministério Público, agora deverão ser divididos com entes privados, circunstância que irá gerar o redimensionamento das estruturas responsáveis pela investigação preliminar.

Há, desta forma, uma especial finalidade preventiva na investigação defensiva, que serve em alguns momentos para fomentar a legalidade na atuação dos agentes estatais e, em outros, para viabilizar as responsabilizações dos eventuais desvios e excessos cometidos por esses mesmos. É importante perceber que a potencialidade da segunda medida acarreta um efeito pedagógico que fomenta a primeira.

Apesar das mencionadas características positivas do uso da investigação defensiva como instrumento de promoção da almejada paridade de armas entre acusação e defesa, dentro do sistema acusatório, não se pode olvidar que se trata de instituto complexo.

A análise de complexidade exige o enfrentamento de complicadores por parte de seus teóricos e aplicadores, tendo em vista que as reflexões acerca das implicações morais e éticas devem mapear um plexo de deveres e limitações àquele que se propõe a executar a prática investigativa.

Investigação defensiva e inquérito defensivo
No Brasil, recentemente foi aprovado junto ao Conselho Federal da OAB o Provimento n.º 188/2019, que regulamenta o exercício da prerrogativa profissional do advogado para a realização de diligências investigatórias e de presidência de inquérito defensivo, possibilitando viabilizar em seu âmbito de atuação uma defesa de alta performance, por meio de técnicas de instrumentalização e antecipação probatória das demandas judiciais, o que militará em favor de uma real paridade de armas no processo penal e da efetivação do devido processo legal substancial.

Com ela, seria possível identificar uma série de benefícios pelo uso da prática para o sistema de distribuição de justiça criminal, como um maior aprofundamento do campo de cognição dos fatos a partir das ponderações apresentadas pela defesa; um maior equilíbrio nas investigações, hoje mais orientadas no sentido de confirmar teses incriminadoras; a possibilidade de melhor esclarecimento sobre o caso penal que será convertido em objeto da acusação formalizada; a partir daí, a identificação (e possível ampliação) de casos que comportam soluções alternativas, reduzindo todos os custos inerentes à tramitação dos processos e, finalmente; a antecipação de questões fáticas e jurídicas de interesse da defesa, tudo isso possivelmente acarretando em uma tramitação mais célere do processo.

Fonte: Canal ciências criminais

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