A Psicologia da Mentira na Investigação Criminal

A mentira é um fenômeno comum na vida cotidiana, mas no contexto da investigação criminal, ela assume um papel particularmente significativo. Entender a psicologia da mentira é crucial para os investigadores, pois muitas vezes a resolução de um caso depende da capacidade de discernir a verdade das falsidades. Este texto abordará como a mentira é compreendida e analisada na investigação criminal.

O Papel da Mentira na Investigação Criminal

Durante uma investigação criminal, suspeitos, testemunhas e até vítimas podem mentir por diferentes razões. O medo de punição, o desejo de proteger terceiros ou a tentativa de ocultar um crime são alguns dos motivos pelos quais as mentiras são contadas. Para os investigadores, identificar essas mentiras é um desafio, mas também uma necessidade, pois uma declaração falsa pode desviar a investigação ou ocultar informações cruciais.

Os profissionais envolvidos, como policiais, detetives e psicólogos forenses, utilizam uma variedade de técnicas para detectar mentiras. Entender os aspectos psicológicos por trás das mentiras ajuda a criar estratégias eficazes para expor as falsidades e obter a verdade.

Comportamentos e Indicadores de Mentira

A psicologia da mentira estuda os comportamentos e sinais que podem indicar que uma pessoa está mentindo. Embora não exista um “detector de mentiras” infalível, certos padrões comportamentais são frequentemente associados à mentira. Por exemplo, o nervosismo excessivo, a hesitação ao responder perguntas e a inconsistência nas respostas são considerados possíveis sinais de que uma pessoa não está sendo totalmente honesta.

Além disso, mudanças na linguagem corporal, como evitar o contato visual ou gesticular de forma nervosa, podem ser indicativos de desconforto e, possivelmente, de uma tentativa de ocultar a verdade. No entanto, esses sinais devem ser analisados com cautela, pois comportamentos semelhantes podem ser resultado de estresse ou ansiedade, que nem sempre estão relacionados à mentira.

O Uso da Psicologia na Detecção de Mentiras

A psicologia desempenha um papel fundamental na investigação criminal, especialmente quando se trata de detectar mentiras. Psicólogos forenses são treinados para interpretar os sinais sutis de engano e avaliar as declarações feitas durante entrevistas e interrogatórios. A análise do discurso, por exemplo, é uma técnica utilizada para identificar inconsistências ou mudanças no tom e no vocabulário que podem indicar uma mentira.

Outra abordagem psicológica é a avaliação da coerência das histórias contadas pelos indivíduos envolvidos. Uma história verdadeira tende a ser mais detalhada e consistente ao longo do tempo, enquanto uma mentira pode apresentar lacunas, contradições e falta de detalhes. Essa análise é especialmente útil em casos complexos, onde as declarações precisam ser cuidadosamente comparadas e verificadas.

O Papel do Polígrafo na Investigação Criminal

O polígrafo, comumente conhecido como “detector de mentiras”, é uma ferramenta que mede respostas fisiológicas, como batimentos cardíacos, respiração e sudorese, enquanto o indivíduo responde a perguntas. Embora não seja considerado infalível e suas admissibilidades em tribunais variem, o polígrafo é usado como uma ferramenta complementar em investigações criminais.

A eficácia do polígrafo depende da premissa de que o corpo humano reage de forma diferente quando uma pessoa mente. No entanto, é importante destacar que essas reações podem ser influenciadas por outros fatores, como nervosismo ou medo, o que pode levar a resultados inconclusivos ou enganosos. Por isso, os resultados do polígrafo são geralmente utilizados em conjunto com outras evidências e técnicas de investigação.

Desafios na Detecção de Mentiras

Detectar mentiras é um desafio complexo, pois os seres humanos são adeptos a mentir de maneira convincente. Indivíduos experientes em enganar, como criminosos habituais, podem apresentar poucos ou nenhum sinal de mentira evidente. Além disso, alguns indivíduos possuem uma capacidade natural de mentir sem mostrar sinais óbvios, tornando a tarefa dos investigadores ainda mais difícil.

Outro desafio é que a detecção de mentiras depende em grande parte da interpretação dos comportamentos e respostas, que pode variar de acordo com o contexto cultural e individual. Por exemplo, em algumas culturas, o contato visual direto pode ser considerado desrespeitoso, enquanto em outras, é um sinal de sinceridade.

Conclusão

A psicologia da mentira é uma área essencial na investigação criminal, fornecendo ferramentas e técnicas que ajudam a distinguir a verdade da falsidade. Embora a detecção de mentiras seja um processo complexo e sujeito a desafios, a combinação de análise comportamental, técnicas psicológicas e ferramentas como o polígrafo contribui significativamente para a elucidação de crimes. Compreender os mecanismos da mentira e saber como identificá-la é uma habilidade vital para os profissionais envolvidos na busca pela justiça.

Em um interrogatório, os detetives prestam atenção à consistência da versão e à linguagem corporal de quem a conta.

“Fui roubado. Um homem apontou uma arma para mim…”, denuncia uma pessoa à polícia.

“Ok, ok”, responde o detetive. “Onde você estava quando tudo aconteceu?”

“Estávamos em um posto de gasolina.”

“Às 4h da manhã, vocês pararam em um posto de gasolina. Por quê?”

“Para usar o banheiro.”

“Então, vocês foram ao banheiro…”

“Sim, e um sujeito apareceu…”

“Espera, espera”, interrompe o detetive. “Vocês entraram no banheiro. Aconteceu alguma coisa nesta hora?”

“Quê?”

“Falaram com algum funcionário. Houve algum desentendimento…”

“Ah… Não! Nada disso…”

(Silêncio)

“Toquei num ponto sensível”, pensa o detetive. “Por que será que não quer falar de algo que aconteceu no banheiro, mas do resto das coisas, sim?”

Joe Kenda
Legenda da foto,Joe Kenda ouve os relatos durante interrogatórios com muito ceticismo

Esse é um diálogo imaginário usado pelo tenente Joe Kenda, veterano do Departamento de Polícia de Colorado Springs, no oeste dos Estados Unidos, para explicar à BBC Mundo, o serviço em espanhol da BBC, para explicar seu método de detectar mentiras.

Fez isso tendo como referência o caso envolvendo Ryan Lochte e outros três nadadores americanos que foram pegos mentindo, após denunciarem um assalto a mão armada no Rio de Janeiro durante uma noite em que saíram para celebrar as medalhas conquistadas na Rio 2016.

‘Exagero’

A polícia brasileira contestou a versão dos atletas e os acusou de terem cometido vandalismo em um posto de gasolina. Para poder investigar o caso, três deles foram impedidos de sair do país – Lochte já estava em casa quando a ordem foi expedida.

Uma vez nos Estados Unidos, Lochte foi a um programa da emissora NBC para dizer que assumia toda a culpa pelo ocorrido.

“Exagerei a história e, se não fosse por isso, não estaríamos envolvidos nesse problema. Nada disso teria acontecido se não fosse por meu comportamento imaturo”, reconheceu o campeão olímpico.

Ryan Lochte durante una rueda de prensa en las Olimpiadas de Río 2016
Legenda da foto,Ryan Lochte reconheceu que havia ‘exagerado’ em sua versão e pediu desculpas

“Quando as pessoas mentem, tendem a não ser muito boas em fazer isso”, destaca Kenda. “Deveriam ao menos ter a decência de serem boas mentirosas. A maioria não é.”

Kenda agora apresenta o programa “Caçador de Homicídios”, no canal Investigation Discovery, nos Estados Unidos. Quando era policial, seu departamento tinha a maior taxa de resolução de casos de todo o país.

Mas como saber se uma pessoa está mentindo?

O método “Columbo”

“Como policial, não confio nem acredito em ninguém”, diz sem rodeios.

“O comportamento humano é muito previsível, e, se você me conta algo fora do comum, isso chama atenção. ‘Por que você fez isso? Não conheço outra pessoa que teria feito isso neste caso, mas você disse que o fez. Por quê?'”

Peter Falk
Legenda da foto,O detetive Columbo, interpretado por Peter Falk, costumava fazer perguntas aparentemente inócuas

Quando alguém chega com um relato ou denúncia, Kenda faz questão de repassar tudo ponto a ponto. A suposta vítima sempre quer ressaltar o fato central do relato, mas o detetive deve explorar o entorno, os detalhes menores.

É uma técnica que segue o método da famosa série policial “Columbo”, exibida nos anos 1970, em que o protagonista insiste em fazer perguntas aparentemente inócuas.

“Ah, uma coisa antes de eu ir. Você foi ao supermercado antes ou depois de ver sua namorada”, perguntaria Columbo.

É exatamente esse o jogo que o bom detetive faz com o interrogado, destaca Kenda. Porque as pessoas podem não se lembrar de tudo que disseram quando o relato é uma invenção, argumenta ele.

No pôquer e na sociedade

A análise também deve ir além das palavras e envolver uma leitura do comportamento do indivíduo.

“Se em algum momento da conversa, você levanta a voz, fica na defensiva ou é evasivo, está mentindo”, aposta o ex-policial.

Jogadores de pôquer
Legenda da foto,Bons jogadores de pôquer são especialistas em ‘ler’ o comportamento dos adversários

Quando alguém mente e sabe que está fazendo isso, há sinais que delatam. É por isso que buscam os detetives, como quando se joga pôquer.

Esse jogo de cartas se baseia em quem consegue enganar melhor o adversário, então, os bons jogadores são especialistas em detectar os sinais corporais dos rivais para extrair informação sobre as cartas que escondem: uma piscadela, uma pulsação quase imperceptível da carótida, um lance fugaz com o olhar.

Os detetives fazem o mesmo em um interrogatório.

“Onde estão seus olhos? Você mantém contato visual? Está nervoso? Fica batendo os pés? Batendo na mesa com os dedos? Fica olhando a porta? Os pés estão firmemente plantados no chão para sair rapidamente assim que possível?”, explica Kenda.

Painel do programa "Caçador de Homicídios", do Discovery
Legenda da foto,Kenda (esq.) faz parte de um painel de especialistas de um programa de TV

Todos esses movimentos corporais ocorrem inconscientemente quando se conta uma mentira ou se tenta enganar alguém.

É nisso que ele presta atenção. “Por que esta pessoa age de forma diferente? O que está acontecendo?”

Os “bons” mentirosos

Naturalmente, há pessoas que são boas em mentir, e, em sua longa carreira, Kenda encontrou uma ou outra. “São sociopatas”, diz ele.

“Uma personalidade assim não tem emoções humanas. Não sente amor, nem culpa, nem compaixão.”

Assim, é difícil detectar quando mentem. Curiosamente, a única coisa que conseguem manifestar é raiva: “Não me deixe furioso. Se ficar, vou te matar”, explica. É aí que pessoas assim podem se entregar.

Kenda usa seu método não só em seus casos, mas para analisar declarações de polícos e pessoas em posições de poder.

Um exemplo foi em 1998, quando o então presidente americano Bill Clinton, envolvido no escândalo com a secretária da Casa Branca Monica Lewinsky, disse diretamente às câmeras de TV: “Não tive relações sexuais com essa mulher”.

Bill Clinton
Legenda da foto,Para Kenda, os gestos e o tom de voz de Bill Clinton foram suficientes para saber que o então presidente mentia

Quando viu isso, Kenda achou imediatamente que ele estava mentindo.

Ele diz que a expressão no rosto de Clinton, sua aparente raiva e o tom de repugnância em sua voz eram meticulosamente calculados para que o telespectador sentisse empatia pelo falso sentimento expressado por ele: “Como alguém pode me acusar de algo assim?”.

A primeira coisa que Kenda especulou foi o motivo de Clinton estar tão na defensiva. “Isso me deixou imediatamente intrigado.”

Durante a declaração, Clinton levantou uma das sobrancelhas e fez gestos indignados com o dedo. O ex-policial concluiu que estava fazendo o que todos os culpados fazem: “Acreditam que a melhor defesa é o ataque”.

Mas a mentira teve pernas curtas em ambos os casos. Clinton sobreviveu ao julgamento político a que foi submetido no Congresso após o escândalo.

Por sua vez, Lochte está vendo sumir seus milionários contratos de patrocínio com marcas internacionais.

Fonte: meucarowatson, BBC NEWS

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