A atividade de inteligência e a investigação criminal possuem práticas operacionais distintas. Este trabalho tem por escopo analisar algumas semelhanças e diferenças entre as respectivas atividades com vistas ao alcance da eficiência, entendida como princípio constitucional norteador da administração pública. Enfatiza-se o aspecto da atividade de inteligência como instrumento de salvaguarda das instituições, bem como a investigação criminal como meio legítimo de busca da verdade no estado democrático de direitos.
Existem significativas diferenças entre a atividade de inteligência e a investigação criminal. Ocorre, no entanto, que, muitas, também, são as semelhanças existentes entre ambos os institutos. Este provavelmente um fator de aumento da imprecisão na compreensão dos conceitos de uma e de outra. Este estado de coisas concorre, também, para a manutenção da visão distorcida que se observa, sobretudo, em relação à atividade de inteligência. Esta visa salvaguardar, em última análise, a própria sobrevivência do Estado. Uma compreensão precisa destes conceitos viabiliza a otimização da prestação de serviço público no âmbito do sistema de justiça criminal. É dizer, que, a atividade de inteligência e a investigação criminal quando desenvolvidas sob as bases científicas que lhes são imanentes proporcionam o alcance da eficiência. Esta, observe-se, entendida como princípio constitucional norteador de toda a atividade desempenhada pelo poder público numa sociedade considerada de risco. É o que se pretende neste texto demonstrar.
É possível afirmar que na sociedade da informação até mesmo o Estado pode estar em perigo na medida em que não são observadas práticas racionais de processamento dos conhecimentos hauridos no mundo fenomênico. Para corroborar esta assertiva socorremo-nos da fala do professor Robinson Fernandes. Este autor conceitua a Atividade de Inteligência como sendo o
“conjunto de medidas e ações adotadas objetivando adquirir e armazenar informações de interesse da Segurança Pública, da investigação policial, almejando medidas persecutórias na constituição de provas ou mesmo na prevenção, a fim de se entender um contexto e panorama criminoso, os fatos praticados pelos delinqüentes, a identificação destes e o respectivo histórico, para reprimir ou antever, assessorando, a tomada de decisões, resguardando e salvaguardando todas as informações e entendimentos oriundos destas, assim como a própria instituição, de investidas adversas.” (Fernandes, 2007, Pg. 6).
Neste diapasão a professora Priscila Antunes, na esteira de Jenifer Sims conceitua a inteligência como a “ organização particular do material coletado que se destina a auxiliar as tomadas de decisão que transformaria simples recortes de jornais em produto de inteligência”. (ANTUNES, 2001, Pg 14) Refere-se nossa autora à metodologia desenvolvida no âmbito da atividade de inteligência. No tocante à proteção e salvaguarda das instituições do Estado vale transcrever a lição de Priscila Antunes que, citando o magistério de Abram Shulsk, afirma que este autor preconiza que “uma vez que o governo tem que estar todo o tempo processando informações, é justamente o segredo e a necessidade de proteção que definem o que deve e o que não deve ser considerado um produto de inteligência”. ( ANTUNES, 2001, Pg.15)
Saliente-se, outrossim, que, no Estado Democrático de Direitos a pessoa humana frui as liberdades ditas fundamentais. Goza, portanto, de especial proteção para efetivamente exercer os direitos que lhe são constitucionalmente assegurados. Sem dúvida um dos principais mecanismos de tutela jurídica do indivíduo é a investigação criminal. Eliomar da Silva Pereira afirma que esta é “ uma pesquisa – com certas peculiaridades relativas à verdade e ao método -, que se especifica por seu objeto – o crime. De forma mais apurada, diríamos melhor que é um conjunto de pesquisas de naturezas diversas, o que é bastante evidente considerando os diversos atores da investigação criminal” (Pereira, 2010, pg. 59).
Na Polícia Judiciária estes atores são o delegado de polícia, os escrivães, os investigadores e os peritos. Cada um desenvolve um papel que concorre para a busca da verdade.
No que se refere às semelhanças existentes entre a atividade de inteligência e a investigação criminal, conforme ensinamento de Mauricio Correali, tanto uma quanto a outra se valem de informações que servirão de arrimo para processos decisórios. (Correali, 2007, Pg. 17); O sigilo é intrínseco a ambas. (IDEM); A atividade de inteligência vale-se de raciocínios lógicos com vistas ao alcance da verdade. Na investigação criminal, igualmente, é buscada a verdade. Ou seja, conhecer como os fatos efetivamente se deram na realidade.(IDEM); Outro importante aspecto a ser ressaltado é a utilização de metodologia científica por parte de ambos os institutos. (IDEM); As atividades desenvolvidas pela inteligência e pela investigação projetam luz sobre fatos do cotidiano. (IDEM); Um último revelador de semelhança entre as atividades é o lidar com informações. O professor Correali ensina que durante uma investigação os investigadores podem se valer dos produtos ofertados pela inteligência. Do mesmo modo, analistas podem se socorrer de conhecimentos produzidos por investigadores em diligências investigativas. (Correali, 2007, Pg.18).
De se notar, fundamentalmente, a existência de significativos traços distintivos entre a atividade de inteligência e a investigação criminal. Os profissionais envolvidos, na medida em que discernem sobre essas diferenças e, pautam suas práticas sobre os postulados teoréticos ínsitos, tanto a atividade de inteligência quanto a investigação criminal, podem atingir resultados mais próximos da eficiência almejada. Valemo-nos neste passo da teoria do filósofo Jürgen Habermas. Assim sendo, é possível afirmar que no (lebenswelt) ou mundo da vida inúmeras são as possibilidades conjecturáveis para o resultado da atuação, v. G, de um orgânico da atividade de inteligência num trabalho de prática operacional em sentido estrito, bem como de um investigador em diligências externas. As possibilidades supra aludidas podem ou não se coadunarem com o princípio da eficiência. Mais abaixo discorrer-se-á especificamente sobre os aspectos práticos imbricados nestas atividades de campo.
Passemos agora ao exame das principais diferenças entre os institutos sob análise.
O Professor Maurício Correali ensina que a atividade de inteligência se diferencia da investigação criminal quanto aos objetivos (IDEM, Pg. 18). Vale dizer, em seara policial, a atividade de inteligência consubstancia uma ferramenta de que dispõe a autoridade policial que é esteio para suas pesquisas sobre os recônditos do mundo criminal que se lhe apresenta (IDEM). Correali afirma que a investigação, neste caso, tem caráter finalístico. Assim sendo, é escopo da investigação criminal “ recolher todos os elementos e evidências ensejadores da responsabilização penal do autor dos fatos.” (CORREALI, 2007, Pg, 19)
A atividade de inteligência é de cariz proativo. Age mesmo antes da ocorrência das infrações penais. A investigação é eminentemente reativa. Pois, atua após a ocorrência do crime ou contravenção penal.
A investigação criminal produz provas buscando a verdade real. É legítima na medida em que fá-lo respeitando o limite intransponível dos direitos e garantias individuais (PEREIRA, op. Cit.). Estes constituem condição de possibilidade de um estado democrático de direitos. É dizer, que, não se deve buscar a verdade a qualquer custo. É inadmissível o tangenciamento dos direitos individuais da pessoa humana com o pretexto, v. G., de se atingir a verdade real. Na esteira do semioticista Charles Sanders Peirce e do epistemólogo Karl Popper Eliomar da Silva Pereira vê no falibilismo uma categoria científica a embasar teoreticamente a investigação criminal. Esta base justifica as limitações imanentes a investigação criminal no referido contexto.
Com a atividade de inteligência é diferente! Outros podem ser os pressupostos a limitar a atividade. Pois, nenhum direito é absoluto. Categorias jurídicas como a calibração e as denominadas normas origem podem, em última análise, justificar, inclusive, a supressão do exercício de determinados direitos por parte dos cidadãos. Karl Larenz, aduzindo a uma discussão metodológica atual no campo da ciência do direito refere-se, e. G., à Jurisprudência dos interesses. Esta possui conteúdo reconhecidamente axiológico. O conhecimento dos casos concretos é que deve pautar as decisões. (LARENZ, 1997).
Noutros termos, conquanto devamos tolerar às vezes a impunidade em nome do respeito aos direitos individuais, no tocante à tutela do estado é diferente. Não é possível nem desejável sacrificar a existência do estado em nome da preservação de direitos fundamentais.
Ensina Correali que a atividade de inteligência deve produzir evidências sobre os fatos. Vale-se para isso, diferentemente da investigação criminal, de metodologia específica de produção de conhecimento. (IDEM) Note-se que estas distinções não são estanques. Pois, é possível observar um trabalho de inteligência que eventualmente produza provas. Neste aspecto saliente-se uma vez mais o magistério de Maurício Correali. Sobre a investigação criminal aduz o mestre que
“Quanto aos investigadores, sempre fizeram análise criminal, até com mapeamentos rudimentares, sem a consciência metodológica própria do campo de inteligência. Mas, suas ações sempre foram e serão voltadas à prova de fatos, ainda que possam, como visto, produzir informações criminais relevantes para o processo de produção de conhecimento.” (CORREALI, 2007, Pg. 20 e 21).
Pode-se afirmar que, de alguma forma, a atividade de inteligência trabalha com as causa do crime. Ressalte-se, no sentido de conhecê-las, supedaneando os órgãos com competência decisória. A investigação criminal, por seu turno, atua precipuamente com os efeitos do delito.
Para ilustrar estas diferenças focalizemos algumas situações práticas. Imaginemos dois investigadores numa diligência externa com a incumbência de identificar e qualificar eventuais testemunhas presenciais de um crime de homicídio doloso qualificado consumado nos termos da lei. Ora, estes agentes não podem chegar no local utilizando uma viatura caracterizada nas cores convencionais da polícia. As pessoas eventualmente indagadas se negarão peremptoriamente a fornecer informações. Naturalmente por temerem represálias. Percebamos, no entanto, que, isto não quer dizer, de nenhum modo, que os investigadores não devem se identificar como policiais civis. É necessário que o façam. O que não podem é expor as pessoas com as quais mantém contato durante os trabalhos.
Notemos, por outro lado, que, situação totalmente diversa é a do operacional de inteligência. Este deve atuar preferencialmente sozinho. Jamais deve usar veículos oficiais caracterizados e, o mais importante, essencial: De modo algum deve se identificar como um agente de campo atuando em missão de inteligência. Não é admissível que o operacional se aproxime de um ponto quente e comprometa todo o procedimento por não respeitar esta regra.
A inobservância destas regras gera consequências diversas, quais sejam, em se tratando de diligências investigativas não se chegará a verdade real. No tocante à missão de inteligência não se obterá o dado negado e a vida do operacional de inteligência terá que suportar aumento significativo de riscos o que, inexoravelmente, torna a atuação do estado ineficiente.
Destarte, é fundamental que os profissionais envolvidos em ambas as atividades se apropriem do necessário “back ground” para desempenharem seus misteres com excelência. A eficiência estatal depende dos recursos humanos empregados pelo estado administração. (SILVA, 2007) A capacitação e formação coerente destes profissionais contribui significativamente para a melhora da prestação de serviço no âmbito do sistema de justiça criminal. E mais. É necessário o desenvolvimento de uma cultura de aperfeiçoamento. O profissional de ambas as áreas precisa adquirir consciência do quão complexas são suas áreas de trabalho.
Se o conteúdo semântico da expressão eficiência possui caracteres de economicidade, superados certos equívocos, com menor dispêndio o estado ofertará serviço público de melhor qualidade a menor custo.
REFERÊNCIAS
ANTUNES, Priscila Carlos Brandão. SNI & ABIN: ENTRE A TEORIA E A PRÁTICA. Uma leitura da atuação dos serviços secretos brasileiros ao longo do século XX. Rio de Janeiro: 2001.
CORREALI, Maurício. A ATIVIDADE DE INTELIGÊNCIA DE SEGURANÇA PÚBLICA E SUA IMPORTÂNCIA PARA O APERFEIÇOAMENTO DA INVESTIGAÇÃO POLICIAL. Dissertação apresentada para seleção de professor temporário de inteligência policial. São Paulo, 2007.
FERNANDES, Robinson. ANÁLISE DE INTELIGÊNCIA E O ENFRENTAMENTO DA CRIMINALIDADE ORGANIZADA. São Paulo: ACADEPOL, 2007.
LARENZ, Karl. METODOLOGIA DA CIÊNCIA DO DIREITO. 3ª edição. Lisboa: Fundação Calouste, 1997.
PEREIRA, Eliomar da Silva. TEORIA DA INVESTIGAÇÃO CRIMINAL. Uma introdução jurídico-científica. Coimbra: Almedina, 2010.
SILVA, José Afonso da. CURSO DE DIREITO CONSTITUCIONAL POSITIVO. São Paulo: Malheiros, 2007.
Autor: Bruno de Oliveira Favero