Passados 35 anos do projeto da Constituição de 1988, esse artigo busca revisitar a teoria da eficácia horizontal pela teoria da eficácia diagonal dos direitos fundamentais e entender em que medida o Estado de Direitos Fundamentais, com seus aportes teóricos e dogmáticos, consegue responder aos desafios do Constitucionalismo Digital. Se a Constituição da República de 1988 é uma instituição viva, não há dúvidas de que está também (pre)ocupada com as novidades desafiadoras da era digital.
Serão, nesse contexto, apresentadas algumas mudanças trazidas pela digitalização do mundo, questionando como isso tem pressionado os fundamentos do constitucionalismo clássico e, também, a partir de um ponto central da reflexão aqui conduzida, como a ideia de eficácia diagonal pode ser utilizada na concretização de direitos fundamentais, no âmbito das plataformas digitais.
A principal diferença entre o clássico Estado de direito e a proposta de um Estado de direitos fundamentais reside na dogmática dos direitos fundamentais transitando de direito subjetivo para direito objetivo. Ou seja, diante da insuficiência de uma concepção dos direitos fundamentais como direitos subjetivos agrega-se à essa versão uma perspectiva de direito objetivo, irradiando-se para todo o ordenamento jurídico, dirigindo todas as funções estatais e condicionando todas as relações privadas, sendo esse os três efeitos dessa nova dogmática.
A eficácia irradiante dita que os direitos fundamentais fornecem impulsos e diretrizes para a aplicação e interpretação do direito infraconstitucional. A eficácia dirigente incumbe ao Estado a função de concretização de seu conteúdo essencial, por meio de medidas positivas com o objetivo de proteger o exercício dos direitos fundamentais. A eficácia horizontal, por sua vez, é a ideia de que os direitos fundamentais irradiam efeitos também para as relações privadas, não constituindo direitos oponíveis somente aos poderes públicos.
O Estado de direitos fundamentais surge como uma decorrência lógica do reconhecimento da influência irradiante, dirigente e horizontal dos direitos fundamentais. Isso implica não apenas a consideração integral das principais ramificações do constitucionalismo, como a supremacia constitucional e o controle de constitucionalidade, mas também movimentar-se institucionalmente sempre em lugares de concretização dos direitos fundamentais, inclusive na esfera privada.
Se a eficácia dos direitos fundamentais já é reconhecida entre privados, as particularidades das plataformas digitais são notáveis e desafiam a teoria como até então pensada. A discussão não se limita apenas à responsabilidade dos entes privados em assegurar os direitos fundamentais, como ocorre nas tradicionais relações privadas, pois se trata de agentes privados que, por meio de suas práticas internas, estabelecem valores e princípios, os aplicam e julgam, buscando validação além das fronteiras nacionais e que possuem uma existência própria, ultrapassando os limites do estado-nação.
A sociedade digital demanda uma adaptação institucional para novos cenários de efetivação de direitos fundamentais, especialmente nas redes sociais. Como o constitucionalismo responde a esse fenômeno?
A relação entre a internet e a teoria constitucional dos direitos fundamentais é ambivalente, pois, se por um lado a tecnologia pode ser utilizada como ferramenta concretizadora dos objetivos clássicos do constitucionalismo, no sentido de regular o poder político e garantir direitos fundamentais, por outro, cria a necessidade da proteção desses direitos que passam a se sujeitar a novas formas de violação nos ambientes digitais [1].
Isto é, se a internet exerce papel quase obrigatório para realização de direitos básicos, seja de primeira geração, como liberdade de expressão e de manifestação política, ou direito de segunda geração, como cultura e trabalho, os mesmos avanços tecnológicos possibilitaram novas formas de violação a esses direitos, como o cyberbullying, a pornografia infantil e mesmo as chamadas fake news [2].
As diretrizes da plataforma fazem regra entre as partes. Para o direito à liberdade de expressão, significa que as plataformas digitais ditam o que pode, ou não, ser compartilhado no ambiente online. A comunidade da Meta, por exemplo, é regulada pelos “Padrões da Comunidade do Facebook”. Conforme informado pela empresa, os padrões da comunidade aplicam-se a todos, em todo o mundo e a todos os tipos de conteúdos. Além das políticas que regulam diversos conteúdos, como nudez, bullying e desinformação, a empresa toma decisões com esteio em seus próprios valores institucionais, sendo eles: voz, autenticidade, segurança, privacidade e dignidade [3].
Para além de determinarem o que será dito, os agentes privados também tem o poder de determinar quem poderá participar do diálogo na rede. Um exemplo disso é o caso do ex-presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, que, em janeiro de 2021, teve suas contas do Twitter, Instagram e Facebook bloqueadas [4].
Quando associadas aos algoritmos, a censura de conteúdos alcança diferentes patamares. A plataforma Instagram, por exemplo, anunciou em 2021 que faria mudanças nos algoritmos que ordenam os storys após denuncias de que estaria censurando posts a favor da Palestina no cenário de conflito com Israel em Gaza [5].
As plataformas também inovam ao funcionar como arenas públicas que possibilitam a condenação e “cancelamento” de pessoas naturais e jurídicas, que sofrem com sanções sociais, independente de devido processo legal, em proporções não vistas em tradicionais meios de comunicação [6].
Não bastasse a edição de regras e princípios próprios, as plataformas já contam com um sistema autônomo para observância da subsunção da conduta com as suas normas. Internamente, esse papel é exercido tanto por um sistema de inteligência artificial, como por moderadores de conteúdo treinados nas políticas da plataforma. Além disso, conselhos externos vem sendo criados com o objetivo de fazer o controle das decisões internas da empresa e seu compliance tanto com as normativas internas como com os direitos humanos.
No exemplo da Meta, o Conselho de Supervisão foi criado para auxiliar na tomada das decisões emblemáticas sobre políticas de moderação de conteúdo. A competência do órgão é, principalmente, proferir decisões finais e vinculantes sobre a aplicação de uma política da plataforma em casos concretos. O órgão já proferiu mais de 60 decisões e, entre casos marcantes, deu a palavra final na decisão de remoção do de Donald Trump da plataforma [7].
Para além de Oversight Board, algumas outras instituições são responsáveis por ter a palavra final em relação às políticas da internet. Em relação aos nomes de domínio (exemplo.com) tem-se a ICANN como órgão multissetorial responsável pela tomada de decisões, como por exemplo: (1) a concessão do domínio Amazon para a empresa em detrimento da objeção dos 8 países que compõe a Organização do Tratado de Cooperação Amazônica; (2) a opção por alocar o nome de domínio para Autoridade Palestina [8]; (3) a negativa do pedido ucraniano para a exclusão dos domínios emitidos na Federação Russa (.ru), no contexto da guerra entre os dois países.
São todas essas mudanças, nas esferas de poder e no âmbito de proteção dos direitos fundamentais, que tornaram necessário o restabelecimento do equilíbrio constitucional nos espaços digitais. Na última década, assumiram a centralidade como objeto de pesquisa do direito constitucional as iniciativas, sejam políticas ou jurídicas, voltadas à articulação de direitos e limitações do poder na internet, formando-se aportes do que ficou nomeado de Constitucionalismo Digital.
O Constitucionalismo Digital, na terminologia proposta por Gilmar Ferreira Mendes e Victor Oliveira Fernandes, seria ideologia constitucional que busca reequilíbrio de poderes na governança digital e a estipulação de prescrição normativa de proteção dos direitos fundamentais [9].
Diante da globalização dos problemas, a dificuldade de re-territorialização do ciberespaço, bem como o protagonismo de agentes privados na eficácia de direitos fundamentais, uma primeira corrente acreditava que seria impossível a coexistência de uma jurisdição estatal para os problemas da sociedade digital. Essa ideia é rebatida por Mendes e Fernandes que defendem a atuação conjunta dos estados e de seus respectivos parlamentos na elaboração da regulamentação da Internet [10].
Se a expressão passou a abranger diferentes iniciativas voltadas à proteção de direitos fundamentais na internet, sejam elas estatais e não-estatais, é importante reconhecer a relevância que atos privados assumiram na tutela de direitos fundamentais e como novos agentes passaram a impactar no exercício de liberdades públicas.
É por isso que, para além da atuação pública, a reação dos agentes privados em face dessas diversas mudanças é estruturante para o constitucionalismo do século 21, visto que, por meio de atos diversos projetam valores e princípios a serem observados para a realização de direitos e limitação de poder na internet. Tanto é que alguns autores, como Lex Gill, Redeker e Urs, afirmam que esses atos normativos alcançam status de “pré” ou “proto-constitucional” [11].
Duas características da sociedade digital justificam o repensar da teoria da eficácia horizontal. Primeiramente, por meio de seus termos de uso, as plataformas digitais projetam, na relação privada, direitos como o de livre acesso a informações e privacidade, exercendo uma função normativa. Ademais, para além de estabelecerem as regras do jogo, os chamados intermediadores, como Facebook e Instagram, fazem cumprir os seus termos, resolvendo conflitos entre os participantes da rede e se engajando em uma verdadeira função adjudicatória de direitos fundamentais, funcionando como verdadeiros tribunais [12].
Todas essas particularidades denotam que tais agentes, como Facebook, Google e Amazon, por exemplo, não assumem uma postura passiva na intermediação de conteúdos produzidos por terceiros. Por meio de seus termos de uso, filtros e bloqueios, são capazes de interferir no fluxo de informações e causar reflexos na possibilidade de realização de liberdades públicas.
Assim, verifica-se a necessidade de reformulação da dimensão da teoria tradicional, abandonando uma perspectiva individualista, para incorporar, diante da esfera digital, uma dimensão colectivo-institucional dos direitos fundamentais nas relações privadas. Isto é, no mundo digital, não se pode pensar apenas na proteção dos direitos individuais dos usuários perante as plataformas, mas na institucionalização de esfera pública digital [13].
Nesse contexto, é preciso reconhecer que, no século 21, em um mundo em que as fronteiras entre público e privado estão cada vez mais esgarçadas, os agentes privados podem ter poderes tão relevantes, ou até mais evidentes, do que os do Estado, sendo necessário pensar nas repercussões dos direitos fundamentais entre particulares.
Nesse contexto, a doutrina vem cunhando outro termo para relacionar a aplicação de direitos fundamentais em relações privadas marcadas por desequilíbrio: a eficácia diagonal dos direitos fundamentais, inicialmente pensada para relações trabalhistas [14]. Em abstrato, a consequência de reconhecimento expresso de uma eficácia diagonal resulta na certeza de obrigação das plataformas em concretizar direitos fundamentais e na sua função quase-pública que justifica a estipulação de limites, barreiras e parâmetros que não se aplicam, tradicionalmente, nas relações entre particulares.
Na prática, uma possível consequência pode ser exemplificada em uma provocação do Ministro Gilmar Mendes, no programa SAE Talks, da Secretaria de Altos Estudos do Supremo Tribunal Federal, cujo tema era o Constitucionalismo Digital, gravado em 2021, sobre a previsão do habeas data como uma proteção de dados do indivíduo perante o Estado, nos termos da Constituição da República. Se o instituto, em tese, não seria aplicável a relações privadas, como reconhecer os direitos fundamentais dos indivíduos frente a entidades privadas poderosas, como Google, Facebook e Amazon [15]?
Em síntese, a internet colocou em tensão relevantes pontos definidores do Estado constitucional moderno, entre eles, o monopólio da criação de normas, que agora é uma tarefa compartilhada com entes de natureza não governamental, os quais, por seu vez, podem extrapolar suas próprias diretrizes, por não estarem vinculados a eventuais amarras convencionais da esfera pública [16].
Assim, exsurge a ideia de que uma possível limitação poderia consistir exatamente no repensar a ideia de eficácia horizontal, migrando para a ideia de uma eficácia diagonal, a qual atribui algumas responsabilidades e barreiras tipicamente públicas para entes privados com capacidade de influenciar o gozo de direitos fundamentais em perspectiva objetiva, sem que essas mesmas limitações se apliquem para tradicionais relações particulares, as quais continuariam a gozar, de forma mais ampla, de autonomia, mesmo que também sejam obrigadas a se comprometer com a Constituição da República e sua parte dogmática, como reconhecido pelo Estado de direitos fundamentais.
[1] DE ARAÚJO, Carolina F. Gomide. Cortes Constitucionais Digitais. 1. ed. Dialética, 2023. v. 1. 148p
[2] DE ARAUJO, Carolina F. Gomide. Cortes Constitucionais Digitais. 1. ed. Dialética, 2023. v. 1. 148p
[3] FACEBOOK. Padrões da comunidade. Disponível em: https://transparency.fb.com/pt-pt/policies/community-standards/. Acesso em: 02.12.2022
[4] DE ARAUJO, Carolina F. Gomide. Cortes Constitucionais Digitais. 1. ed. Dialética, 2023. v. 1. 148p
[5] DE ARAUJO, Carolina F. Gomide. Cortes Constitucionais Digitais. 1. ed. Dialética, 2023. v. 1. 148p
[6] FRAZÃO, Ana. Devido processo digital: Em que medida o devido processo legal se aplica aos julgamentos online e às relações privadas na Internet? Disponível em: <https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/constituicao-empresa-e-mercado/devido-processo-digital-20102021>
[7] COMITÊ DE SUPERVISÃO DA META. Estatuto. Disponível em: https://oversightboard.com/governance/. Acesso em 02.12.2022
[8] KURBALIJA, Jovan Uma introdução à governança da internet; tradução Carolina Carvalho. São Paulo: Comitê Gestor da Internet no Brasil, 2016.
[9] MENDES, Gilmar Ferreira; OLIVEIRA FERNANDES, Victor. Constitucionalismo digital e jurisdição constitucional: uma agenda de pesquisa para o caso brasileiro. Revista Brasileira de Direito, Passo Fundo, v. 16, n. 1, p. 1-33, out. 2020.
[10] MENDES, Gilmar Ferreira; OLIVEIRA FERNANDES, Victor. Constitucionalismo digital e jurisdição constitucional: uma agenda de pesquisa para o caso brasileiro. Revista Brasileira de Direito, Passo Fundo, v. 16, n. 1, p. 1-33, out. 2020.
[11] Cf. GILL, Lex; REDEKER, Dennis; GASSER, Urs. Towards Digital Constitutionalism? Mapping Attempts to Craft an Internet Bill of Rights. Berkman Klein Center for Internet & Society Research Publication 2015;
[12] MENDES, Gilmar Ferreira; OLIVEIRA FERNANDES, Victor. Constitucionalismo digital e jurisdição constitucional: uma agenda de pesquisa para o caso brasileiro. Revista Brasileira de Direito, Passo Fundo, v. 16, n. 1, p. 1-33, out. 2020.
[13] TEUBNER, Gunther. Horizontal Effects of Constitutional Rights in the Internet: A Legal Case on the Digital Constitution. Italian Law Journal, v. 3, n. 2, p. 485–510, 2017
[14] CONTRERAS, Sergio Gamonal. Cidadania na empresa e eficácia diagonal dos direitos fundamentais. Trad. Jorge Alberto Araujo. São Paulo: LTr, 2011.
[15] Disponível em: https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=475571&ori=1
[16] BECKER, Daniel; ACETTA, Felippo. O status quo digital: reafirmação de paradigmas constitucionais pelas plataformas digitais. Disponível em: <https://www.migalhas.com.br/depeso/364828/o-status-quo-digital>
- Christine Peteré doutora e mestre em Direito, Estado e Constituição pela UnB, professora associada do mestrado e doutorado em Direito das Relações Internacionais do Centro Universitário de Brasília (UniCeub), ex-secretária-Geral do TSE e assessora de Ministro do Supremo Tribunal Federal.
- Carolina Gomide de Araújoé mestranda em Direito Constitucional pela Universidade de São Paulo e pesquisadora do Núcleo de Estudos Constitucionais (NEC/UniCeub, Brasília).