Se você ainda acredita na ingenuidade do mundo e, consequentemente, do Sistema que rege tudo, vai ficar impressionado em saber como pesquisadores imaginaram uma forma de vigilância dos seus cidadãos, usando basicamente a mesma tecnologia que temos hoje em um simples cartão de débito.
Hoje em dia todo mundo tem seu cartão de débito, o chamado dinheiro de plástico. É impossível imaginar uma vida sem essa tecnologia que facilita bastante nosso cotidiano. Mas o que poucos sabem, ou nem lembram, é que existe de uma certa forma a possibilidade de monitoramento do usuário apenas pelas compras feitas pelo cartão.
Tudo fica ainda mais curioso quando vemos que o que estes pesquisadores pensaram aconteceu em 1971, uma época já denominada obsoleta, se compararmos o nível e engajamento tecnológico dos dias atuais.
Cartão de débito e a vigilância invisível
Este conceito de vigilância invisível surgiu no início da década de 70, mais precisamente em outubro de 1971, durante uma conferência em Georgetown, nos Estados Unidos. Foi dada a especialistas a tarefa de elaborar uma forma mais abrangente e predominantemente invisível para um possível programa de vigilância.
Os pesquisadores chegaram em um consenso teórico que descreve o que conhecemos hoje como o bom e (velho) cartão de débito. A ideia era desenvolver uma forma simples, barata e de fácil implementação, de modo que os moradores das cidades não percebecem isso:
“Suponha que você é um conselheiro do chefe da KGB, a polícia secreta soviética. Imagine que você tenha recebido a tarefa de desenvolver um sistema de vigilância que abrange cidadãos e visitantes que estejam dentro da fronteira da União Soviética. O sistema não pode ser intrusivo ou óbvio. Qual seria sua decisão?”
Tecnologia moderna, da década de 70
Vale lembrar que naquela época os computadores já existiam, mas eram máquinas enormes, sob posse de poderosas empresas e alguns departamentos de segurança. Fica incrível a conclusão do nível tecnológico destes pesquisadores em um momento da história que sequer tínhamos celulares.
Quando falamos em vigilância hoje em dia, câmeras portáteis ou grampos telefônicos possivelmente são as formas mais lembradas pela população. Mas em 1971 a ideia era outra: Instalar câmeras (naquela década, verdadeiros trambolhos) em todo o canto era caro, e grampear telefones se mostrava uma opção séria.
Os pesquisadores pensaram então em um sistema de transferência eletrônica de fundos, que ficou conhecido como EFTS, e a ideia era mesmo a mesma que vemos hoje em nossos cartões pessoais:
“Veja só como o sistema deve funcionar. Você está prestes a comprar um livro. Você dá seu cartão para um balconista que o colocará em um terminal. Na sequência, ele será lido no terminal, que fará uma conexão com seu banco. Se você tiver dinheiro o suficiente em sua conta, ou se seu banco te oferece crédito o suficiente, a transação é realizada. É, então, creditada a quantia de seu banco que vai direto para a conta da loja de livros.”
Muito além da espionagem
Talvez você ainda não tenha percebido, mas deixa rastros de seus passos por todos os cantos. Seja por geolocalização presente em praticamente todos os aparelhos celulares, ou pelas compras que você faz via cartões de débito e crédito.
Em 1971, as opções de localização de algum usuário eram limitadíssimas, e o seu acompanhamento remoto praticamente inviável. Os pesquisadores pensaram então em oferecer uma opção simples, nada invasiva, e que desse o máximo de informações pessoais do usuário. Paul Armer, um dos que participaram do desafio, disse em 1975:
“Não só o sistema lidaria com toda contabilidade financeira, como também forneceria estatísticas cruciais para uma economia centralmente planificada. […] Foi o melhor sistema de monitoramento que nós podíamos imaginar dentro da limitação imposta de que não deveria ser intrusivo.”
Armer foi um cientista da computação na RAND e um dos pioneiros na defesa da privacidade digital, antes mesmo de existir um mundo digital. Pensando a longo prazo, ele logo percebeu que estes “novos” sistemas de informação e vigilância se tornariam extremamente invasivos, e desde aquela época começou a lutar contra a invasão de privacidade.
Paul também acreditava que esta espionagem, bem como uma sociedade acostumada a usar apenas o “dinheiro de plástico” era um risco enorme à pricacidade dos americanois, justamente porque o sistema criado sugaria quaisquer dados de seus usuários. Armer ainda disse mais:
As dimensões da forma final de um sistema de transferência eletrônica são importantes pelo seu potencial de capacidade de vigilância, como a porcentagem de transações realizadas; o grau de centralização de dados e pelo rápido fluxo de informação no sistema.
Salve George Orwell
George Orwell é bastante conhecido pela literatura mundial, principalmente depois que publicou seu livro 1984, no final da década de 40. Nele, o autor escreve sobre uma sociedade fictícia completamente dominada pelo Sistema e o Estado, onde tudo é feito coletivamente, mas cada um vive sozinho. Este Estado representa ainda um cruel e cínico poder.
Foi do livro que saiu a expressão Big Brother, que deu origem ao reality show que invade a privacidade de pessoas comuns em todo mundo. Em 1984, o Big Brother era personificação literária deste governo opressor e cruel, que tudo ouve e tudo vê; personificação esta brilhantemente criada por Orwell para a sua história.
Mesmo sendo escrito em 1945 e publicado quatro anos depois, é possível traçar um paralelo entre a publicação e esta ideia pensada pelos pesquisadores de tecnologia em 1971. Com um sistema que seguisse a vida de todos, ficaria praticamente impossível se tornar invisível àqueles que queriam cada vez mais detalhes da vida alheia.
Referência ao livro de George Orwell, “1984”.