Gratuidade de justiça e a inobservância da presunção de hipossuficiência

O benefício da gratuidade de justiça é um direito assegurado constitucionalmente, conforme previsão expressa no artigo 5º, inciso LXXIV, segundo o qual “o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos”.

No entanto, mesmo antes da promulgação da Constituição Federal, o benefício da gratuidade de justiça já era previsto em nosso ordenamento jurídico, mais especificamente na Lei 1.060/1950, que foi parcialmente revogada pelo CPC/2015.

Tal benefício tem como fundamentos o direito de ação, bem como o princípio da inafastabilidade da jurisdição e o acesso à justiça.

Conforme previsto no artigo 98, caput, do CPC, a gratuidade de justiça alcança a pessoa natural ou jurídica, brasileira ou estrangeira, com insuficiência de recursos para pagar as custas, as despesas processuais e os honorários advocatícios. E, apesar da norma processual falar também na pessoa jurídica, vamos nos ater neste artigo apenas às pessoas naturais, e a razão desta opção ficará demonstrada adiante.

Presunção de insuficiência x comprovação de insuficiência

A Constituição Federal prevê que o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos. Da leitura do referido texto constitucional já é possível fazer uma observação, uma vez que ali se fala em “comprovação” de insuficiência de recursos e, num primeiro momento necessário se faz ressaltar que o termo “assistência jurídica” é mais amplo que o termo “gratuidade de justiça”, motivo pelo qual a Constituição Federal faz alusão à necessidade de comprovação para se ter a assistência jurídica e integral do Estado.

No tocante à gratuidade de justiça, essa regra não se aplicaria às pessoas naturais, uma vez que estas fazem jus à gratuidade de justiça independentemente de comprovação. A ausência da necessidade de comprovação da gratuidade de justiça decorre de lei infraconstitucional, como veremos a seguir.

O artigo 4º da Lei 1.060/1950 (já revogado) estabelecia que a parte gozaria dos benefícios da assistência judiciária mediante simples afirmação de que não poderia arcar com as custas do processo e honorários sem prejuízo do seu sustento e de sua família, e assim está também previsto no CPC/2015, especificamente no artigo 99, §3º: “Presume-se verdadeira a alegação de insuficiência deduzida exclusivamente por pessoa natural”.

O legislador, com o intuito de preservar o direito constitucional à gratuidade de justiça, meio de assegurar também o direito de ação do indivíduo, estabeleceu uma presunção legal resultante da declaração de insuficiência de recursos dada pelo requerente, bastando, pela letra da lei, que isso fosse declarado de forma expressa.

Tal presunção, embora decorrente de lei, não é absoluta e pode ser afastada quando o juiz verificar nos autos a presença de elementos que evidenciem a ausência dos requisitos legais que autorizam a concessão da gratuidade de justiça, situação em que o juiz poderá exigir da parte que comprove o preenchimento dos requisitos, como está previsto no artigo 99, §2º, CPC.

No entanto, apesar de a norma ser clara quanto à presunção ser a regra, e a exigência de comprovação do alegado ser a exceção, o que se vê na prática forense é justamente o contrário, uma vez que a parte que requer a gratuidade acaba sendo instada a comprovar a sua necessidade para que a demanda tenha seu fluxo normal, ainda que a norma processual diga o contrário.

Ordem dos parágrafos induz a uma interpretação equivocada

Ao ingressar com uma determinada demanda, a parte que faz jus à gratuidade de justiça só tem dois caminhos a seguir: o primeiro, que acontece na maioria das vezes, a parte, ao ajuizar a demanda, anexa os documentos que comprovariam a sua insuficiência de recursos ou, quando a documentação não acompanha a inicial, o magistrado despacha determinando tal comprovação, deixando, inclusive, de analisar pedidos de tutela de urgência que podem trazer danos irreparáveis à parte [1].

A forma como os magistrados interpretam a norma processual decorre da disposição do texto normativo, a qual, conforme entendimento da ministra Nancy Andrighi, no voto proferido no REsp nº 2.057.894/SP, revelaria uma aparente contradição já que, de um lado há uma presunção de veracidade da alegação de insuficiência da pessoa natural (artigo 99, §3º) e, do outro, a possibilidade de afastamento desta presunção quando a declaração não for verossímil (artigo 99, §2º).

No entanto, o que seria uma aparente contradição, decorre, na verdade, da disposição do texto normativo no Código de Processo Civil, já que o texto do § 3º deveria constar no § 2º, e vice-versa [2]. A ordem dos parágrafos, tal qual está no texto normativo, induz a uma interpretação equivocada, fazendo com que o magistrado entenda que primeiro ele deve exigir a comprovação do benefício e, somente no momento seguinte, pode reconhecer a presunção e deferir a gratuidade.

Consequências para o jurisdicionado

A bem da verdade, a inobservância da presunção legal dada à pessoa natural pelo legislador, sendo por interpretação equivocada ou não do texto normativo, acarreta uma série de problemas ao jurisdicionado, como, por exemplo, quando o requerente da gratuidade é menor de idade e, embora deva o magistrado conceder a gratuidade de forma imediata aplicando a presunção legal, este acaba, com base no artigo 99, §2º, CPC, determinando que o representante legal do menor comprove, através da sua própria condição econômica, o direito do menor de ter a gratuidade de justiça concedida.

Tal equívoco é absurdo, a começar pelo caráter personalíssimo da gratuidade de justiça, razão pela qual não se pode analisar o direito senão a partir da condição da pessoa que o pleiteia. Ressalta-se que o caráter individual e personalíssimo da gratuidade de justiça decorre da própria lei, como vemos no artigo 99, §6º, do CPC: “O direito à gratuidade da justiça é pessoal, não se estendendo a litisconsorte ou a sucessor do beneficiário, salvo requerimento e deferimento expressos”.

Por esta razão, não há que se falar em análise da gratuidade do menor através da condição econômica do seu representante legal, pois se não pode o magistrado estender o benefício a litisconsorte ou sucessor processual, a partir da condição pessoal do autor, não deverá, portanto, conceder ou deixar de conceder o benefício ao autor a partir da condição econômica de terceiro.

Neste sentido, o Superior Tribunal de Justiça vem firmando entendimento, ressaltando que o vínculo existente entre o menor e seus representantes legais, vínculo este que decorre, sobretudo, da incapacidade civil e econômica do menor, não autoriza o exame ao direito à gratuidade a partir da condição financeira de seus representantes.

Neste mesmo sentido, o objeto da demanda, ainda que não deva ser fator determinante para a presunção da alegação de insuficiência, deve ser também analisado, pois não se deve criar restrições injustificadas ao direito de ação e ao direito fundamental de acesso à justiça, principalmente naqueles casos que versam sobre alimentos ou de natureza emergencial.

Inobservância em sede recursal

Da mesma forma que acontece com frequência em primeira instância, a presunção legal do direito da pessoa natural à gratuidade de justiça vem sendo, diuturnamente, inobservada em sede recursal.

Considerando que o pedido de gratuidade de justiça pode ser postulado também em sede recursal, a presunção legal prevista no artigo 99, §3º, deve ser aplicada nas hipóteses em que o pedido for feito em sede recursal, a fim de que se possa observar também o previsto no §7º, do mesmo artigo.

Os relatores acabam por fazer a análise direta do pedido, sem considerar a presunção legal e, sem submeter o recurso ao colegiado, condicionando a análise do recurso ao recolhimento das custas deste, situação que pode ser, demasiadamente, prejudicial ao recorrente.

Fato é que o indeferimento do pedido de gratuidade pelo relator, por decisão monocrática, acaba por antecipar o julgamento do mérito recursal nas hipóteses de interposição de agravo de instrumento contra decisão que indeferiu ou revogou o benefício e, num pior cenário, pode levar ao entendimento de que a parte recorrente, ao recolher as custas do recurso, estaria implicitamente renunciando ao benefício pleiteado, em razão do comportamento contraditório; comportamento este que só existe por ausência de observância da norma processual pelo relator.

Com isso, vemos que a inobservância da presunção legal passou a ser a regra quando da análise dos pedidos de gratuidade de justiça, em primeira e segunda instâncias, deixando o jurisdicionado em flagrante situação de insegurança jurídica, com flagrante violação ao princípio da legalidade, sendo necessária uma interpretação inversa da que vem sendo dada pelos órgãos judiciais.

[1] Enunciado 385, FPPC: Havendo risco de perecimento do direito, o poder do juiz de exigir do autor a comprovação dos pressupostos legais para a concessão da gratuidade não o desincumbe do dever de apreciar, desde logo, o pedido liminar de tutela de urgência.

[2] Embora pareçam pensar da mesma forma, não o dizem expressamente: LOPES, Bruno Vasconcelos Carrilho. Comentários ao Código de Processo Civil. Volume II. São Paulo – Editoria Saraiva, 2017. Pg. 253/255; e, Breves Comentários ao Novo Código de Processo Civil/Teresa Arruda Alvim Wambier… [et.al.], coordenadores. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015. Pg. 372.

  • Fernanda Tereza Melo Bezerraé especialista em Direito e Processo do Trabalho pela Universidade Candido Mendes, especialista em Direito Processual Civil pela Uniffa, pesquisadora no Núcleo de Processo Civil da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (Nupepro/Emerj) e membra da Associação Brasileira Elas do Processo (Abep).

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