O Código de Processo Civil em vigor prestigiou o direito substancial à prova, facultando expressamente a produção antecipada em situação que não tem natureza cautelar e, portanto, sem urgência, destacando-se, entre as hipóteses possíveis, aquela cuja precípua finalidade é a de diagnosticar a viabilidade de uma possível e futura ação judicial (artigo 381, inciso III).
Enfatiza, a propósito, Flávio Yarshell que o diploma processual de 2015 trouxe significativa inovação ao desvincular a antecipação da prova do requisito do perigo, positivando o que se pode conceber como direito autônomo à prova (Breves comentários ao novo CPC — obra coletiva —, 3ª ed., São Paulo, Ed. RT, 2017, pág. 1.027).
Esse denominado direito autônomo à produção de provas viabiliza o acesso ao conhecimento de fatos por meio de processo legítimo e idôneo, sob a chancela do Poder Judiciário, caracterizado pela cooperação das partes e pelo exercício de contraditório nos limites da pretensão à exibição de documentos ou, até mesmo, à produção de outros meios de prova.
Examinando a regra do artigo 381 do Código de Processo Civil, Fredie Didier Júnior, sob interessante perspectiva, assinada que: “… também aqui há o reforço à ideia de que as provas também possuem as partes como destinatárias. Busca-se a produção antecipada da prova para que se possa obter um lastro probatório mínimo para o ajuizamento de uma demanda futura ou a certeza de que essa demanda seria inviável” (Curso de direito processual civil, vol. 2, 17ª ed., Salvador, JusPodivm, 2022, pág. 140).
Trata-se, portanto, de expediente processual apto a constituir prova para eventualmente, no futuro, ser incorporada em outro processo. A prova antecipada não se dirige propriamente a formar o convencimento do juiz, mas, sim, da parte requerente, como mecanismo eficaz para que seja bem aferida a viabilidade de potencial e sucessiva investida judicial.
Como procedimento de natureza não contenciosa, em que inexiste litígio propriamente dito, não se reserva nenhuma apreciação de mérito da prova recolhida, mas tão somente a observância da regularidade do seu procedimento de obtenção, sob o crivo do contraditório.
É bem verdade que, a teor do parágrafo 4º do artigo 382 do diploma processual, eventual debate entre as partes exsurge deveras exíguo. No entanto, dúvida não tenho de que se faz possível, nos limites da prova cuja produção é pretendida pelo autor, a instauração de contraditório, até mesmo para assegurar ao demandado a garantia de ser ouvido, sobretudo quando o tiver ele de justificar a inexistência ou o perecimento da prova ou mesmo que a exibição desta conspira contra o seu próprio direito.
Isso significa que, de modo absolutamente coerente, doutrina e jurisprudência são convergentes no sentido de que o direito autônomo à prova, de um lado, tende a prevenir o ajuizamento de demandas temerárias, e, de outro, encontra limitações em respeito ao direito subjetivo da parte, que tem a prerrogativa legal de não produzir prova contra si próprio!
É importante considerar, neste particular, que o direito à produção da prova não é absoluto, ou seja, jamais pode comprometer a situação jurídica do requerido, de quem sempre se espera cooperação e lealdade, mas não de submissão ao pleito do requerente.
Para meu conforto intelectual, secundando exatamente esta linha de raciocínio, a 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, ao julgar em época recente o Recurso Especial nº 2.037.088/SP, com voto condutor do ministro Marco Aurélio Bellizze, admitiu o contraditório no bojo da produção antecipada de prova. Permito-me transcrever os seguintes excertos do respectivo acórdão:
“A controvérsia posta neste recurso especial, para além da discussão acerca da ocorrência de negativa de prestação jurisdicional, centra-se em saber se, no procedimento de produção antecipada de prova, a pretexto da literalidade do parágrafo 4º do artigo 382 do Código de Processo Civil, não haveria, em absoluto, espaço para o exercício do contraditório, tal como compreenderam as instâncias ordinárias, a ponto de o Juízo a quo, liminarmente — a despeito da ausência do requisito de urgência — e sem oitiva da parte demandada, determinar-lhe, de imediato, a exibição dos documentos requeridos, advertindo-a sobre o não cabimento de nenhuma defesa, bem como de o Tribunal de origem, com base no mesmo dispositivo legal, nem sequer conhecer do agravo de instrumento contraposto a essa decisão.
O entendimento adotado pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, suficientemente fundamentado, não encerra, em si, nenhum vício de julgamento.
Não obstante, no mérito, não se pode deixar de reconhecer que o proceder levado a efeito pelas instâncias ordinárias, permissa venia, aparta-se, por completo, do chamado processo civil constitucional, concebido como garantia individual e destinado a dar concretude às normas fundamentais estruturantes do processo civil, utilizadas, inclusive, como verdadeiro vetor interpretativo de todo o sistema processual civil…
Por evidente, é possível que as normas processuais estipulem o modo como o contraditório deva ser exercido, diferindo-o eventualmente; ou mesmo, em função das especificidades de determinado procedimento, possam restringir as matérias passíveis de serem nele arguidas. A restrição do direito de defesa, estabelecida em lei, encontra justificativa, portanto, nas particularidades e, principalmente, na finalidade do procedimento por ela regulado.
Não há, obviamente, nenhuma vulneração ao princípio do contraditório em tais disposições legais.
Todavia, eventual restrição legal a respeito do exercício do direito de defesa da parte não pode, de maneira alguma, conduzir à intepretação que elimine, por completo, o contraditório, como se deu na hipótese dos autos.
A vedação legal quanto ao exercício do direito de defesa somente pode ser interpretada como a proibição de veiculação de determinadas matérias que se afigurem impertinentes ao procedimento nela regulado. Logo, as questões inerentes ao objeto específico da ação em exame e do correlato procedimento estabelecido em lei poderão ser aventadas pela parte em sua defesa, devendo-se permitir, em detida observância do contraditório, sua manifestação, necessariamente, antes da prolação da correspondente decisão.
Por conseguinte, o parágrafo 4º do artigo 382 do Código de Processo Civil – ao estabelecer que, no procedimento de antecipação de provas, ‘não se admitirá defesa ou recurso, salvo contra decisão que indeferir totalmente a produção da prova pleiteada pelo requerente originário’ – não pode ser interpretado em sua acepção literal…
De tais considerações já se pode antever que, no âmbito da ação probatória autônoma, mostra-se de todo imprópria a veiculação de discussão acerca dos fatos que a prova se destina a demonstrar ou sobre as consequências jurídicas daí advindas.
A vedação contida no dispositivo legal em comento (parágrafo 4º do artigo 382), por evidente, refere-se a essas matérias, absolutamente impertinentes ao objeto tratado na ação de produção antecipada de provas…
No caso dos autos, conforme demonstrado, o Juízo a quo, liminarmente e sem oitiva da parte adversa, determinou a citação da demandada para apresentar os documentos indicados na inicial no prazo de 30 (trinta) dias, advertindo-a sobre não ser possível a apresentação de nenhuma defesa, nos termos do parágrafo 4º do artigo 384 do Código de Processo Civil. Interposto agravo de instrumento, o Tribunal de Justiça de São Paulo, pelo mesmo fundamento (qual seja, a dicção do referido dispositivo legal), não conheceu do agravo de instrumento.
Em se reconhecendo a afronta ao princípio do contraditório – do que se me afigura inescapável, conforme se demonstrou pontualmente –, tem-se que o provimento do presente recurso não poderia ensejar, simplesmente, o retorno dos autos ao Tribunal de origem, para que este conheça do agravo de instrumento…
Em arremate, na esteira dos fundamentos acima delineados, dou provimento ao recurso especial, para tonar sem efeito a decisão de primeira instância que determinou a citação da parte demandada para apresentar a documentação no prazo de 30 (trinta) dias, a fim de que lhe seja concedida a oportunidade de apresentar a defesa que reputar conveniente, pertinente com o objeto do procedimento em exame, nos termos da presente fundamentação, observando-se, a partir de então, o devido processo legal“ (destaques no original).
Concluo, salientando que esse importante precedente, pela sua invejável fundamentação, bem retrata a visão dogmática, no âmbito da ciência processual, que deve predominar nos dias de hoje, direcionada a conceber o processo como instrumento revestido das garantias constitucionais, dentre elas, as que asseguram a isonomia e a paridade de armas entre os litigantes!
José Rogério Cruz e Tucci é sócio do Tucci Advogados Associados, ex-presidente da Aasp, professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Brasileira de Letras Jurídicas e conselheiro do MDA.
Revista Consultor Jurídico, 11 de agosto de 2023, 8h00