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Nas últimas semanas, estamparam os noticiários reportagens e manchetes apontando que a Abin (Agência Brasileira de Inteligência) adquiriu e utilizou o software FirstMile, da empresa Cognite, antiga Verint Systems Ltda. Tal sistema possibilita a identificação da localização aproximada de até 10 mil pessoas a partir dos números de seus aparelhos celulares, uma vez que utilizem redes móveis (Dataprivacy Brasil, 2023), ou seja, é capaz de geolocalizar e monitorar inúmeros indivíduos, gerenciando suas movimentações. Além da Abin, outros estados da federação também foram apontados como adquirentes da ferramenta.

Dois alertas são gerados a partir da divulgação desse fato: as funcionalidades digitais de novos sistemas baseados em dados são potencialmente violadoras de direitos humanos, principalmente no que tange à proteção da privacidade e intimidade; e a ausência de regulação prévia e controle judicial das ferramentas em uso pelo Estado possibilita um cenário de atuação desenfreada. Será sob o enfoque do primeiro aspecto que esse texto se desenvolverá.

Agência Brasil

Na obra “1984”, George Orwell, acertadamente, pontuou que se você quer manter um segredo, você deve ser capaz de esconder determinada informação de si mesmo, sob a pena da mesma ser capturada por agentes externos ligados às forças de dominação (Orwell, 2009, p. 199-200).

Não obstante a narrativa tenha se dado em um tom alarmante em decorrência do contexto histórico de pós-guerra que antecedeu suas reflexões e pelo receio da retomada de regimes autoritários nos anos vindouros, tal preocupação vem se mostrando pertinente nos tempos hodiernos. Como manter escolhas e informações na esfera privada quando cada passo, cada busca digital, cada transação bancária são capazes de estarem sendo rastreados?

Numa sociedade de controle, o ser humano torna-se uma cifra, um número, e as massas se tornam dados, amostras (Deleuze, 2013, p. 226).  Deleuze (2013, p. 228-229) já indicava que não seria difícil “conceber um mecanismo de controle que dê, a cada instante, a posição de um elemento em espaço aberto”, o que denominava por coleira eletrônica. Eis que a previsão de 1990 se confirmou.

Diferentemente do que ocorria na Oceânia de 1984 — de Orwell —, hoje, não apenas o Estado (representado pela figura do totalitário Grande Irmão no livro) possui acesso aos dados dos cidadãos, mas as grandes empresas de tecnologia também — ou até em maior escala e aprofundamento — podem tratar dados, inferir comportamentos, ou mesmo incentivar ações, a partir de sugestionamentos tênues. É o que Shoshana Zuboff denomina de capitalismo de vigilância. O controle de dados se tornou uma nova forma de monetização.

Isto posto, a indagação supracitada torna-se fruto da constatação de que hoje existem inúmeros dispositivos que são capazes de gerar em diferentes níveis o monitoramento da população em tempo real e que fazem reduzir, paulatinamente, as linhas tênues existentes entre os espaços públicos e privados que, de acordo com a doutrina clássica, guardavam a importante função de preservar os espaços de liberdade, de isolamento, conforme as nuances trazidas pelo ideal do direito à privacidade. Aduz Freire Pimentel, nesse aspecto, que:

O processamento dessa infinita quantidade de dados, ou “onda de informações” confere aos sistemas de IA (inteligência artificial), em razão de suas panópticas onipresenças em nossas vidas, uma verdadeira e superpoderosa onisciência informacional, que é obtida através de uma mineração e interação constante dos dados representativos dos nossos pontos de preferências. (FREIRE PIMENTEL, 2023)

Assim, o direito de ser deixado só, pouco a pouco, foi esmorecendo e deixando de ser tornar compatível com os atuais cenários de vigilância intensificados, sobretudo, pelo próprio desenvolvimento das tecnologias, de modo que se ampliou as dimensões desse direito, como pode ser vislumbrado na dimensão referente à “autodeterminação informacional”, ou seja, “o poder de controlar organismo público e privado, que contenha dados pessoais” (Rodotà, 1999, p. 124; Rodotà, 2008).

A título de exemplo, um caso que ilustra os novos desafios de promoção do direito à privacidade frente à crescente inserção no mercado de itens conectados à rede e com capacidade de captura, decodificação e armazenamento dos dados gerado (IOF —  Internet das Coisas [1] ocorreu no ano de 2015 (Mulholland, 2019). Neste ano, foi divulgada uma denúncia de que as smartTVs da Samsung estariam monitorando, constantemente, os espaços físicos que estavam inseridas e que os áudios capturados estariam sendo vendidos para empresas parceiras responsáveis por gerarem publicidades, anúncios correspondentes aos perfis dos usuários, o que revelou uma “monetização do superávit comportamental” (Zuboff, 2020, p. 433).

Uma das grandes problemáticas apontadas foi o total desconhecimento dos consumidores dessa funcionalidade dessas televisões inteligentes, posto que, embora a empresa tenha informado que preza pela proteção da privacidade, pela tutela dos dados dos usuários e que havia uma especificação clara, como bem analisou Caitlin Mulholland (2019, p.109), à luz do Código do Consumidor: “a cláusula mencionada, por estar inserida em um contrato de adesão, deveria vir destacada, por se tratar de tema relacionado à proteção de uma situação subjetiva existencial”.

Desse modo, diante do poder dessas tecnologias atuando sobre o contexto de hiperexposição nas redes sociais com a cultura de nutrir as atuais plataformas com fotos, vídeos, observa-se que as atuais ferramentas de IA são capazes de identificar em uma simples imagem as emoções da pessoa, com a leitura da movimentação muscular facial, além de determinar e condicionar padrões comportamentais, principalmente, para fomentar a lógica do consumo com serviços personalizados, ao captar o perfil do usuário até a sua mais ínfima e profunda fração de privacidade (Zuboff, 2020; Souza Mello, 2023).

Uma vez que essas formas de vigilância eletrônica possibilitam traçar os perfis emocionais, os padrões comportamentais, os gostos, as vulnerabilidades, alterando também a própria concepção de privacidade dos usuários no contexto da Big Data (Lyon, 2014), Morozov (2018) aduz que essa nova etapa do capitalismo revela um processo “dadocêntrico” responsável por transformar todas as interações pessoais e sociais em ativos rentáveis. Portanto, a premissa basilar dessa nova forma de extrativismo terá como matéria prima toda uma cadeia de usuários inseridos na rede, visto que o corpo humano eletrônico alimentará o sistema com estoques infindáveis de informações valiosas aos mercados, sendo esses, segundo Zuboff (2020, p. 22) “os verdadeiros clientes”, pois serão as empresas que negociarão nos “mercados de comportamento futuro”.

Destarte, uma vez que o capitalismo de vigilância ao procurar prever e modificar o comportamento humano, tem ampliado as suas redes de controle e de condicionamento social (Zuboff, 2020), pontua-se que, atualmente, a política global de proteção integral da personalidade humana vem abrangendo uma sistematização global de proteção à privacidade (Rodotà, 2008), ou deveria.

Para Zuboff (2020, p.22), o capitalismo de vigilância atuará através de assimetrias relacionadas ao “conhecimento e ao poder que dele resulta”, posto que essa atual fase de controle social possibilita um conhecimento aprofundado sobre todos nós por parte dos atuais players. Em contrapartida, a grande parcela que utiliza as atuais ferramentas não possuem o conhecimento mínimo sobre todas as operações que estão sendo feitas, se e como os dados pessoais estão sendo capturados, muito menos sobre quais finalidades. Nas suas palavras:

(…) elas [as tecnologias] predizem nosso futuro a fim de gerar ganhos para os outros, não para nós. Enquanto o capitalismo de vigilância e seus mercados futuros comportamentais tiverem permissão de prosperar, a propriedade desses novos meios de modificação comportamental irá ofuscar a propriedade dos meios de produção como o manancial da riqueza e do poder capitalistas do século 21 (ZUBOFF, 2020, p. 22).

Dito isso, os dados pessoais coletados e decodificados pelas novas tecnologias são capazes de proporcionar um conhecimento maior sobre os indivíduos do que a própria pessoa, já que o uso massivo dos dados fornecidos vem possibilitando a criação de sistemas inteligentes capazes de adentrar e influenciar diferentes setores das nossas vidas (Lee, 2018, p. 110), pelo seu caráter invasivo nas “relações sociais e pessoais, das transformações comerciais, das atividades políticas” (Rodotà, 2008, p. 142). A falsa noção de autonomia, de conhecimento sobre as causas e as consequências geradas pelos fornecimentos das informações cotidianas, demonstram que muitos acreditam que os dados fornecidos estariam gerando somente o aprimoramento dos serviços on-line (Souza Mello, 2023).

No que diz respeito ao monitoramento realizado em civis, cabe pontuar que a política de cookies dos navegadores, para anúncios personalizados, que as tecnologias de GPS, que os serviços de telemetria em um contexto de usuários desatentos e com pouco conhecimento sobre as potencialidades positivas ou não dessas ferramentas inseridas no mercado, são questões que fazem reforçar esses casos de espionagem e de venda de dados. Portanto, o cruzamento dessas informações e as buscas por um maior controle sobre o que está sendo capturado, além das reflexões quanto à autodeterminação referentes às finalidades de uso, tornam-se metas na busca pela segurança informacional de inúmeros agentes, tanto pelo setor público, quanto pelo setor privado, que também pode ser alvo de ações contrárias à lei.

Assim, o monitoramento de localização de atores políticos pela Abin de 2018 a 2021 revela apenas a ponta do iceberg e de tudo o que é possível conhecer e monitorar com a imensidão de dados que são gerados cotidianamente, demonstrando a face antidemocrática e assimétrica da sociedade de controle, ainda que não tenhamos discutido sobre os limites da atividade de inteligência e nem mesmo sobre a necessidade ou não de ordem judicial autorizando o rastreamento de pessoas [2]. O conhecimento das potencialidades das ferramentas que usamos e a regulação de aplicações parecem ser prementes, principalmente quando o Estado passa a realizar contratações milionárias para aquisição de ferramentas tecnológicas.

Ante o exposto, cumpre reforçar, por fim, que além dos desafios regulatórios concernentes à captura dos dados pessoais, dos padrões comportamentais no atual cenário de hiperconexão e de datificação da vida humana para finalidades meramente mercadológicas, urge salientar a importância de fortalecer a inclusão digital no que tange o seu aspecto qualitativo. Ou seja, uma inclusão que seja capaz de fornecer as garantias de acesso às tecnologias que estão sendo inseridas no mercado e, ao mesmo tempo, de fomentar políticas públicas capazes de desenvolver a “capacidade técnica, social, cultural e econômica” dessa sociedade da informação (Lemos; Costa, 2005, p. 6), ou seja, de modo a permitir que o usuário seja capaz de construir uma visão crítica sobre o uso das novas ferramentas, sobre as vantagens e perigos que podem surgir e, por fim, de gerar uma inclusão técnica interligada aos conhecimentos operacionais (Souza Mello, 2023).

Referências bibliográficas
DATAPRIVACY BRASIL. Associação Data Privacy Brasil de Pesquisa oficia Ministério Público Federal sobre uso do software FirstMile pela Inteligência. Disponível em: https://www.dataprivacybr.org/associacao-data-privacy-brasil-de-pesquisa-oficia-ministerio-publico-federal-sobre-uso-do-software-firstmile-pela-inteligencia/ Acesso em: 25 out. 2023.

DELEUZE, Giles. Conversações. Tradução de Peter Pál Pelbart. São Paulo: Editora 34, 2013.

FREIRE PIMENTEL, Alexandre. Clone virtual: uso da imagem de pessoa falecida por algoritmos de IA. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2023-ago-01/alexandre-pimentel-uso-imagem-falecido-ia.  Acesso em: 20 out. 2023.

LYON, David. Surveillance, Snowden, and big data: Capacities, consequences, critique. Big Data & Society, v. 1, n. 2, 2014.

MOROZOV, E. Big Tech: A ascensão dos dados e a morte da política. São Paulo: Ubu, 2018.

MULHOLLAND, Caitlin. Mercado, Pessoa Humana e Tecnologias: a Internet das Coisas e a proteção do direito à privacidade In: EHRHARDT JÚNIOR, Marcos; CORTIANO JUNIOR, Eroulths (Orgs).Transformações no Direito Privado nos 30 anos da Constituição: estudos em homenagem a Luiz Edson Fachin. 1ª ed. Belo Horizonte: Fórum, 2019, v. 1, p. 103-115.

ORWELL, George. 1984. Tradução de Alexandre Hubner e Heloísa Jahn. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

RODOTÀ, Stefano. Para uma cidadania eletrônica: a democracia e as novas tecnologias de comunicação, 1999. In: Os cidadãos e a sociedade de informação, Lisboa. Disponível em: http://ancacid.yolasite.com/resources/11.003%20-%20ISI%20-%20T%C3%B3pico%2011%20-%20RODOT%C3%80%2C%20Stefano%20-%20Para%20uma%20cidadania%20electr%C3%B3nica.pdf. Acesso em: 10 jun. 2022.

RODOTÀ, Stefano. A vida na sociedade da vigilância: a privacidade hoje. Editora: Renovar, Rio de Janeiro, 2008.

SOUZA MELLO, B. C. de. Autoritarismo digital ou ciberdemocracia? A influência das novas tecnologias sobre as atuais crises democráticas . Revista Vianna Sapiens, [S. l.], v. 14, n. 1, p. 30, 2023. DOI: 10.31994/rvs.v14i1.938. Disponível em: https://www.viannasapiens.com.br/revista/article/view/938. Acesso em: 19 out. 2023.

WU, Tim. Impérios da comunicação. Do telefone à Internet, da AT&T ao Google. Tradução: Cláudio Carina. Rio de Janeiro: Zahar, 2012.

ZUBOFF, Shoshana. A era do capitalismo de vigilância: a luta por um futuro humano na nova fronteira de poder. Trad. George Schlesinger. 1ª ed. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2020.

[1] Segundo Caitlin Mulholland: “A Internet das Coisas representa inovação tecnológica que permite a criação de ambiente interligado através de sensores que conectam objetos ou bens por meio da Internet, possibilitando não só a comunicação e realização de funções específicas entre as coisas, como gerando a cada vez mais constante coleta, transmissão, guarda e compartilhamento de dados entre os objetos e, consequentemente, entre as empresas que disponibilizam este tipo de tecnologia às pessoas.” (MULHOLLAND, 2019, p. 111)

[2] Modalidade que atualmente não encontra correspondente nem mesmo dentre os meios de obtenção de prova na atuação investigativa da persecução penal.

  • BraveBreno Cesar de Souza Melloé doutorando em Direito Civil pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj) e mestre em Direito e Inovação e em Direito e Inovação pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF).
  • BraveGiulia Alves Fardimé advogada, doutoranda em Direito Processual pela USP e mestre em Direito e Inovação pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF)
  • BravePaulo Corrêa Frossardé analista de suporte e manutenção na instituição CAEd, com ênfase em análise de dados e implementação de sistemas auxiliares, e tecnólogo em análise de sistemas pela Universidade Cesumar.

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